Pessoas, Animais e outros que tais
"Pessoas, animais e outros que tais - narrações do
Dr. Domingos Pintado"
Ed. Campo das Letras
de Pedro Baptista
Publicado hoje no Primeiro de Janeiro
Pessoas, animais e outros que tais em Domingos Pintado
Joaquim Pinto da Silva *
1
Nestas andanças em que os rituais são imutáveis, nestas missas, os acólitos e
padres variam e os crentes são cada vez menos, serão até mais penitentes dado o
ónus de muitas estopadas servidas em comunhões afins.
Dizia eu que, nestas costumeiras sessões, um perigo real, quase único, é o do
pressuposto apresentador, dado obviamente como amador da obra, se transforme,
sem culpa alguma desta, desse amador em armador, enterrando-a, sepultando-a, ou,
duma outra maneira, o amante passar a armante, por força da inabilidade e da
falta de ciência e, mais ainda, da presunção esparrinhada como água benta, como
é comum ser por aí.
Isto é, nem o Dr. Domingos Pintado, nem as suas narrações, nem o Pedro Baptista,
podem ser chamados à capa por tudo aquilo que está aqui a ser dito.
2
As curiosas Narrações que hoje se apresentam traçam por alto um percurso
biográfico, o do Dr. Domingos Pintado, desde os tempos em que o Porto ainda o
era, isto é, em que não se esperava ordem, nem autorização, nem cheque, do
Terreiro do Paço ou do partido – como se houvesse diferença! – para puxar a
faniqueira e lançar o pião ao solo a rolar imparável, centrífugo e centrípeto
para si e o país, nos idos 1958, quando a praça Carlos Alberto, muito mais Sem
Medo que o general vitoriado, abarrotou de liberdade e fez tremer um regime.
Pois, as narrações vão daí até há pouco, àqueles dias sombrios em que às vezes,
muitas vezes, a liberdade como que nos estorvou, nos fez dormir mal pela falta
de exercício... do seu. Falamos de 2001.
Mas estou aqui mais naquela função eminentemente informativa, a da recensão, e
por isso, continuemos.
Como nos seus anteriores livros, Sporá e Cavaleiro Azul, o Porto, e amiúde a
Foz, são o cenário da maior parte das narrações. Dizemos mesmo que nestas três
obras está manancial abundante para a história da cidade e das suas
mentalidades (junta-se assim a outros que desta época (de final de 50 até aos
setentas) tiraram e fizeram história, como Agustina Bessa-Luís e António
Rebordão Navarro, por exemplo).
Perguntamo-nos de caminho o que resultará em escrita quando e se Pedro Baptista
resolver efabular este início de século, com as traições, misérias e o rol de
personagens desalmadas que conheceu e com quem conviveu.
Citando o autor: que seria do amor-próprio, se não arrasássemos pelo menos
alguns dos outros?
Ficamos expectantes.
O Porto de Domingos Pintado já não é tanto, como nos dois primeiros livros do
autor, o da grande burguesia da sua parte ocidental, do seu enriquecimento
nebuloso em tempos de guerra e pós-guerra e da sua declarada adesão a uma
ditadura saloia, visivelmente decadente e castradora do futuro do país. O Porto
destas narrações é antes o do mundo do trabalhador e da pequena burguesia,
plena, é certo, de conflitos morais, éticos e estéticos ligados à sua própria
natureza, mas laboriosa e atenta, de cuja matriz afinal se fez esta cidade.
Cidade capaz de um humor original, essencialmente auto-crítico, como a cena do
(e cito) “Paulo Proença que, desde que se escondeu numa quinta de Vila Nova de
Gaia, fazendo saber-se que estava a estudar música em Itália, passou a
denominar-se Paolo di Proenza” e, ao mesmo tempo, ter um Jorge Lima Barreto,
precursor irreverente e fundamentado do Free Jazz, numa altura em que já uma
certa elite da Linha apreciava, é certo, o Jazz, mas muito menos o Free, este
último afinal o Graal perseguido por Lima Barreto, Pedro Baptista e toda uma
geração cujo pensamento, e acima de tudo acção, não é, não pode ser, ofuscado
por uma transitória bandeira ideológica, afinal mais instrumental que
interiorizada, conforme gosta de reafirmar o autor deste livro.
Há também as incursões de Domingos Pintado no mundo rural nortenho, não fosse
afinal esta invicta cidade tão minhota como duriense, com episódios de um
retorno radical (à raiz, portanto) à mãe-terra, plenos de singeleza e ternura,
a que não resistimos ler-vos um naco:
...Ocorreu na que agora se chama a Praça do Marquês, num sítio que antes se
chamava da Aguardente. Ao lado, não há muito tempo, em todo o espaço que vai
até à Rua da Alegria, havia uma aldeia chamada a Empegada. São factos
relevantes por causa da motivação hortícola da história que, agora me lembro,
foi-me contada por um barbeiro, tal como, segundo me garantiu na altura, veio
publicada como notícia nos jornais.
Era eu moço, o homem aos anos que se foi, mas a história acompanhou-me”,
continuou. “Ainda estou para saber se me fez bem ou mal.
… Ora a rua que hoje se chama Costa Cabrão, perdão, Cabral – isto é que eu
tenho uma dislexia com estes nomes! – era a que fazia de estrada de Guimarães,
através da Areosa e de Ermesinde, e dava acesso imediato a toda a zona rural de
Paranhos.”
Com as mãos postas, finíssimas como o resto do porte, desenhava a estrada
nacional a subir pelo Minho adentro, com os polegares, os atravessamentos
perpendiculares, como quem apontava dum lado, o Atlântico, doutro, Aguiar de
Sousa, e com um gesto envolvente – carnal, mesmo erótico! - de ambas as mãos,
acariciava os vastos plainos da actividade agrícola tanto a Leste como a Oeste,
a Norte como a Sul.
Sacou de uma cigarrilha, espreitou, soslaiando com os olhos claros a grande
máscara dos quiocos que me tinha vendido, como se sublinhasse a excelência do
negócio que eu tinha feito com a sua benevolência e, feito o compasso da
expectativa, continuou:
Vindo dessa rua, todas as manhãs, passava pelo Largo um jumento puxando um
carro com sacos de farinha destinados aos moletes ou às sêmeas duma padaria da
Praça. E todas as manhãs, sem excepção, o ardina, que instalado na esquina
desde o despontar da aurora vendia os matutinos, tinha na saqueta uma folha de
couve para lhe dar. O animal parava, recebia a tronchuda e a carícia do
zoófilo, saudoso do tempo em que lidava com um igualzinho, em longos diálogos
na solidão do monte e do odor à urze e ao rosmaninho, mastigava repascido a
tenra hortense e, só posto isso, se dispunha a arrancar para a função social.”
…Assim foi durante anos. O burrinho e o ardina constituíam, naquela esquina,
uma simbiose tão unida, uma parelha de tal complementaridade”, subia o tom do
Sr. Mello, tirando ao tribuno, como se estivesse na alma do bispo de Viseu,
“quanto a do jornal a alimentar o espírito e a do pão a alimentar o corpo que
ambos traziam para a sociedade, onde aquela amizade se tinha tornado um caso
falado, um case study como agora diriam.”
Parou de novo por um segundo, inspirou e expirou lentamente. Então prosseguiu:
Uma bela manhã, enfim, bela é uma forma de dizer”, interrompeu-se numa comoção
repentina, “o ardina não apareceu na costumada esquina.
O jumento chegou, parou como sempre e aguardou. Às vezes o ardina estava a
entregar algum jornal e demorava uns segundos a trazer-lhe a couve. Mesmo
estranhando não lhe ouvir a voz, – Já vou! Já vou! - dizia-lhe nessas ocasiões,
aguardou. Talvez tivesse andado depressa demais, terá pensado o animal,”
prosseguia o Sr. Mello com um tom lúrido a assomar-lhe ao rosto, quiçá a
passar-se para o meu.
O animal esperou especado, nem um passo, nem um movimento. O ardina não
chegava. Não tinha chegado, chegaria um pouco depois. Esperar mais. Esperou.
Esperou. O dono exasperava-se, mas ele esperava. Mas o ardina demorava. Nem
chegava àquela hora, nem na seguinte, nem a qualquer outra. Soube-se que tinha
adoecido e gravemente. De não mais se levantar.
Tal como o nosso burrinho”, rematou o Sr. Mello, comovido, uma lágrima a
chegar-se ao canto do olho.
Foi nem mais um passo. Falaram-lhe, puxaram-no, bateram-lhe, gritaram-lhe,
acariciaram-no, até que um inteligente, o preclaro antónimo de burro, quem sabe
se licenciado como você, Pintado, pela Universidade de Lisboa, lembrou-se do
evidentíssimo.
Era simples, simplíssimo, simplicíssimo, ir buscar-lhe uma couve e pronto!
Logo, vindas da Empegada”, prosseguiu o Sr. Mello, “apareceram molhos e mais
molhos de couves tenríssimas, tronchudas, murcianas, pencas e bastardas no
regaço de numerosas pessoas dispostas a substituírem o ardina e a, todas as
manhãs, fornecerem ao popular animal o petisco que tanto apreciava.
Deram-lhe a crucífera para alívio do dono que ia ter de novo quem levasse a
farinha pelo Bonjardim abaixo e para gáudio de todos que iam voltar a ter todas
as manhãs aquele quadro idílico da terna ligação entre o humano e o asinino.
Silêncio. Eu desconfiado, o Sr. Mello com os olhos no chão.
Silêncio demorado.
Só que o animal, retomou, nem tus, nem bus, nem um meximento da cabeça; boca
cerrada, nem um passo.
Comoção. Mais silêncio. Um longo silêncio. Até a cigarrilha fumeava abandonada
no cinzeiro, como se sofresse ou chorasse. Só então o Sr. Mello concluiu,
explicitando o mais que visto:
O que ele queria não era a couve, era o ardina. O ardina e o seu acto original.
Foi preciso, pelo fim da tarde, vir outro carro puxado por uma mula, para o
levar amarrado e deitado.
Pensou-se que, com o tempo, a coisa passasse e um daqueles dias todos voltassem
a ver o burrico chegar ao Largo da Aguardente carregando a farinha, e que o
ardina substituto, até em homenagem ao antecessor, ganhasse o hábito de, todas
as manhãs, como sempre, depositar-lhe entre os dentes a tenra folha de troncha.
Seria o melhor fim para a história”, sublinhou o Mello com um sorriso, sem
escapar ao patético.
A verdade é que o burrinho, como contou o Sr. Mello, nunca mais apareceu. E
quando perguntaram ao homem que costumava vir com ele no carro, porque não
tinha voltado, informou que o burrico tinha morrido.
“De fome. Desde aquela manhã, recusara-se definitivamente a comer fosse o que
fosse”, terminou o Mello, olhos marejados, de tal forma incomodado, que pareceu
arrependido de ter iniciado a narração.
Desculpe lá, leitora ou leitor, mas ele há mesmo horas difíceis…
ou, numa bela prosa descritiva, tão sensual como ilusória, na descrição duma
vaca, mas não de uma qualquer, a do Senhor Joaquim:
…Não sei se foi pela forma como o Sr. Joaquim falava dela, com as palavras a
encherem-lhe a boca de gosto como se degustasse um manjar, se pelo olhar
lascivo com que a seguia. Certo é que dei comigo, tal como ele, a seguir-lhe a
elegância da cernelha, a desenvoltura do recorte da lombada, a atracção do entremeio
e sobretudo a leveza do passo lânguido, tirante muito mais ao garbo duma
equídea de alta-escola vienense do que à imagem duma arrastadeira pesadona tida
para as bovinas. A languidez daquele passo a subir a ladeira, contornando os
escolhos a caminho do planalto, tendo, pela frente, mais adiante, apenas o
Empíreo, era a alma da feminilidade por excelência, insusceptível de qualquer
analogia com o concreto, pecante sempre por inadaptação…
e ainda com a mesma Gertrudes, o quase insanável conflito cidade-campo,
fotografado primeiro numa citadina insensibilidade para a profunda e singela
poética rural:
…- O Sr. Joaquim não leve a mal – arrisquei – mas, diga-me, por que deu um nome
de mulher à sua vaca?
- E porque havia de dar-lhe nome que não fosse de mulher? - espantou-se o Sr.
Joaquim com a pergunta, devolvendo-ma, sem esconder, no entanto, o mal-estar. -
Queria que lhe desse nome de homem? - insistiu, demonstrando-me o absurdo da
pergunta, se é que eu não estava a insinuar alguma com aquele chamar de atenção
à condição bovina da bovina que não servia para mais do que para apoucar a
bicha. E já que eu gostava de perlincafuzes, que me lembrasse que é mais fácil
um burro perguntar do que um sábio responder. Que desculpasse, mas tal
pergunta, tal resposta…
e, para terminar com a Gertrudes (para a mandar pastar), na incompreensão total
da analítica e científica lógica campestre:
- Oh Sr. Joaquim, mas se lá em cima estão para aí umas cem ou mais vacas, como
o senhor disse, como é que no fim do mês, quando a vier buscar, reconhece a
Gertrudes entre as outras? - perguntei-lhe mal nos levantámos e retomámos a
subida, convicto de que, desta, estava a colocar uma boa pergunta, cuja
resposta poderia revelar um mundo desconhecido.
… Homessa? Como? Por trás, pela frente, pelos lados, pela ilharga, pela cara,
pelo andar... reconheço-a... até de olhos fechados – respondeu, olhando para a
Gertrudes em cada uma das perspectivas que enumerava, parecendo ficar-se sobre
ela, nostálgico, pelo menos fascinado, ao seguir-lhe o passo vagaroso.
- Como? - insisti, que fala-se mais depressa do que se faz e respostas vagas
não me satisfaziam.
- Como? Então não reconhece a sua senhora no meio das outras? - fuzilou-me,
quase gritando, irritado por ter de esclarecer as coisas até àquele grau
ridículo da minúcia, como se cada um não soubesse como se coloca em relação a
cada coisa.
E eu fiquei a pensar nas ancas da minha senhora como se fossem o lombo da
Gertrudes. Mais que o lombo, talvez as pás….
Não tendo nós o objectivo de escalpelizar a totalidade do texto – que vos
sobraria? -, e menos ainda de o substituir, passemos de seguida às questões da
escrita, das ideias e da autoria, não sem antes chamar à cena o Púchkin,
personagem querida do narrador, e mais ainda do autor.
Domingos Pintado era “dos que tratam bem os cães mas desprezam os que os
imitam” (p. 22), e esse seu amor pelos Púchkin’s, pois de dois se trata, um
sucedeu ao falecido, leva-o a apresentá-lo como o termómetro infalível da
natureza humana, quer das suas amizades, quer dos clientes que visitavam a sua
loja de alfarrábios e velharias. Um rosnar do Púchkin é prenúncio do mau
carácter de quem entra em cena, um agitar de cauda e um latido afável, são
garantia da simpatia do narrador. Pintado, vítima de um forte ataque da sua
angina pectoris, vê a vida ser-lhe salva pelo Púchkin que lhe traz à mão a
medicina redentora.
3
Será Pedro Baptista um romancista a sério, capaz? Pergunta sempre legítima, ou
não devêssemos pôr-nos em causa em permanência.
Haverá nesta escrita cheia de primeiros sentidos, e alguns segundos, e de
evidências programáticas humanistas e incursas, um esteta assumido?
Da memória prodigiosa, metódica e organizada seguramente, de onde brota um
Porto (e uma Foz), sessentista e pós-abrilista, haverá lugar a uma noção do
para além, a uma denotação obrigatória, necessária ao que quer ser arte e não
apenas crónica?
“A intriga, por si só, é folhetim... o que distingue o romance (e o conto) das
memórias é o encadeamento de factos, o dramatismo da acção”(1), e, por aqui,
visivelmente estas narrações passam a fronteira.
“Se o seu significado se limitasse à função imediata e à sua forma
fenoménica... a obra seria absurda”(1). Toda a obra de arte ou letras se
prolonga num além, alimentado insistente e permanentemente pelo tempo, pelo
leitor, pelo modo, pela moda, (e pelo Marcelo Rebelo de Sousa). E isto já a
Idade Média o tinha percebido, segundo Umberto Eco, mas nada, nenhuma
elucubração ginástico-crítica, pode exceder a chamada “intenção do texto”, como
nos diz o mesmo autor. Isto é, há limites para a subjectividade na
interpretação de uma obra literária ou artística.
Vejamos este belíssimo trecho seleccionado por mim bem antes de a Campo das
Letras o ter eleito para acompanhar o convite oficial e a contracapa do livro e
que dá razão a Umberto Eco: “narrar é pensar com os dedos”:
… Vestia, como no último dia, de negro, as calças justas ao corpo esguio, a
blusa esparzida por filamentos prata, uma grande folga na gola da dobra a fazer
de decote descaído sobre o peito magro, a adivinhar-se quase raso. O preto, no
entanto, não se ficava por aí: subia-lhe para o rosto alcoforando-lhe os olhos
e desenhando dois grossos riscos ovais do crayon, o tema pop dum desenho
gráfico; continuava, assentando sobre o branco do papel, a cabeleira basta,
como se a mancha fosse a sombra das palavras que proferia, dos gestos, dos
passos, quem sabe se dos pensamentos, quem saberia se dos sentimentos. Chegava,
vinda de um álbum mas, ao arrepio do cliché, nos lábios finos, nem um tom de
escarlate, nem um tom de rosa, nem um tom fosse qual fosse de qualquer batom,
antes o impacte radical da discrição natura. Tal como as faces que, se tiveram
algum tratamento que não pareciam ter tido, foi a reforçar a palidez do rosto,
alvura adequada para o rigor do negro absoluto dos olhos, das suas molduras,
dos cabelos soltos, do fato. O branco e o negro…
E serão o conto e o romance apenas produto da memória? Fácil pareceria ser
então escrever romances.
Mas se imaginar é recordar, e “o melhor romancista é aquele que se recorda”
(João Gaspar Simões), então essa memória, passiva e activa, arquivística e
prospectiva, é imprescindível ao sucesso do escrito.
As narrações de Domingos Pintado são pois, fruto de uma natural combinação de
experiência e imaginação, a que se junta uma escrita que eu chamaria de
“erudita em registo raso”, onde o patentear do dúctil manejo da pena não impede
uma leitura escorreita e clara. Neste capítulo do estilo, registe-se ainda a
ousadia dos neologismos e do pôr em letra fórmulas orais populares não
avalizadas na norma… ainda.
Mas e o compromisso, o engagement, as promessas das cantantes auroras,
perderam-se numa evolução política sofrida pelo grande revolucionário Pedro
Baptista (e esta deve ser uma das perguntas escondidas de alguns dos presentes)?
Há ou não tese política por detrás de Domingos Pintado?
Pese embora o ultrapassado da questão, anacronismo mesmo, no caso vertente é
curioso repô-la, conhecendo nós o conservadorismo latente de alguns
intelectuais e leitores de hoje.
“A tese não é adversa ao romance. O que lhe é adverso são as teses capazes de
subordinar as personagens à ideia directriz. As personagens são o elemento
criador essencial do romance.” (João Gaspar Simões), e neste ver, e temos isso
com Tânia, a quem voltaremos, confirmamos que não há subordinação da literatura
à Ideia. Aquela desliza livremente pelo texto que se ressente em simultâneo,
mas não em substituição e muito menos em contradição, com esta. Há opinião
Essa humanidade, e já atrás o tínhamos afirmado, estampa-se em ternura, tantas
vezes ingénua nas personagens como o Marques, que de aldrabado passa a
triunfador, chegando a ficar com a mulher do aldrabão, do Senhor Joaquim, o da
Gertrudes, do Mello, e em outros, e ainda num entendimento do mundo como
complexo mas apetecível, como desvirtuado em muitos aspectos, mas regenerável,
assim o entenda e actue o Homem.
4
Voltemos ao texto propriamente dito, para, em jeito terminal, falarmos de
Tânia.
E quem é Tânia, a da dedicatória inicial e que nos ressurge apenas no último
capítulo, indicialmente intitulado Interface?
… Ainda por cima Tânia, agora, não se vai sem, no mínimo, três minutos de
piano. Uma espécie de sinal. De aviso de que as portas vão ser cerradas e a
noite inelutável vem por aí abaixo. O alarme, é ao que soa!
Gosta das coisas, gosta da casa, gosta do Púchkin, pode até ter alguma simpatia
por mim, mesmo admiração, apreciar as bodegas que vou escrevendo, mas... é
preciso não perder o sentido das realidades, sobretudo agora que não há muito
tempo para vaguearmos longe de onde estamos.
Hoje, ao ir-se – atreveu-se a mordiscar-me a orelha com uma gargalhada infantil
– senti a frescura lasciva dos seus lábios junto ao lóbulo, enquanto me cofiou
os cabelos entre os seus dedos. Pelo sedendo da cabeleira? Ou pelo vetusto da
alvura? Espantoso aquele sorriso ao despedir-se! Tão perfeito que parecia
sincero! Talvez não seja já um estrito profissionalismo, mas não será mais do
que generosidade, reconhecimento pela minha forma de tratá-la, quase como uma
filha. Nada mais. Perfeição, até parecer autêntico! Mas quem andou não tem para
andar. E quem não andou, que andasse.
Meus olhos, minha memória. Adornos da quimera de deter algumas chaves do mundo
sem o assumir fora do secretismo da solidão com que teci as minhas algemas.
Alegorias solipsas, inócuas, a Parker, a faca umbundo, a camisa xadrez vermelho
e negro de pescador de Matosinhos a exibirem o puído, em permanência nas costas
da cadeira da secretária, sobre o dorso nos Invernos.
Infância de sol, noites engurujadas nas paredes rofas, húmidas e frias na
penumbra de corredores, garras arrepanhando-me a derme dos ombros, bicos
necrófilos a esventrarem-me, medos de mim próprio, asfixia, fantasma.
Um povo de fantasmas. Como me poderia rebelar se me tornei um deles? Terei
passado algum dia sem me lembrar da noite lôbrega? Como poderia criar, se o
útero esteve sempre emprenhado pelo terror?
Tive sempre, no sótão da minha consciência, noção do que deveria fazer. Clara,
nem sequer difusa. Por isso mantive-o esconso, silencioso e lúgubre,
esquecendo-me de onde tinha posto a chave ou de onde eram as escadas de acesso.
Adequadamente. O meu problema não foi falta de consciência. Foi medo da minha
própria consciência. Tanto medo que até medo de mim, medo de nós…
… Reencontrar-me-ei com ela, daqui a pouco, em Massarelos e jantaremos sob a
ponte da Arrábida.
Estadeei-me com uns jeans, linho branco na camisa a condizer com a alvura,
agora plena, da cabeleira, lenço seda de fundo lilás florido em torno do pescoço,
sandálias. E uma nova armação nas cangalhas. Finíssimas, titânio. Como se não
existissem. A tecnologia da esvaecência. O comediante no charme do anacoreta. O
franciscano secundariza as ostentações materiais, entre elas, a mais
inconveniente: a idade. Será mesmo? Ou transformar-se-á num trunfo a reverter a
favor? A ostentação da não ostentação. O mistério. A construção do invisível. A
teia virtual. O ovo de Colombo.
Tânia.
Cansa-me andar sempre a jogar.
A pé, seguiremos até ao Ouro, às velhas instalações da Electricidade. Pavilhão
das Buganvílias, chamaram-lhe eles. Os MetaMortemFase, numa peça do Porto
Capital Europeia da Cultura. Metamortem, imagine-se, tão jovens e tão
previdentes no futuro longínquo! Quem sabe o que acontecerá com Tânia, junto ao
ouro no Rio do Ouro, o Douro? Quem sabe se, ainda com o fogo das sobretardes
que fazem da água ouro, não desaguaremos juntos, nas amadoiras da Foz? Onde o
rio se faz com o mar (para onde se foi Altina)? Ou com o cosmo (para onde se
evolou)? Onde esperaremos, no silêncio do breu adornado pelas cintilas das
estrelas, o grande fogo de todos os dias?
Ou ficaremos em terra? Tânia não aparecerá, a noite será simplesmente noite?
Como o futuro?
Sortilégio da minha imortalidade? Ou ilusão nenhuma? Ou a ilusão de ilusão
nenhuma?
Dêmos tempo ao tempo, caríssima leitora ou leitor. Se vos convier e se o Dr.
Pedro Baptista der o seu aval, este vosso servo, Domingos Pintado, prosseguirá
para um novo volume, com a narrativa do que lhe veio a suceder com Tânia (terá
chegado a suceder algo?) e com mais uma dúzia de estórias do virar do século,
recolhidas na loja e registadas nos canhenhos. (Tânia passá-las-á ao
computador?)
É que, como se diz no comércio, à dúzia é mais barato…
Tânia é tema explicitamente prometido para novas narrações e Interface é de
facto preâmbulo a futura obra, porta de passagem entre uma idade madura que
recusa o desarme e a capitulação, e uma juventude atraente e solta em busca de
experiência e do novo, mesmo que esse renovo, como a mor das vezes acontece
quando é válido, se venha a apoiar numa maturidade, numa tradição, no
acontecido.
E aqui citamos uma resposta do escritor ao autor destas linhas a propósito de
Tânia:
A Tânia surge como “Interface” porque é a passagem para a problemática de uma
pessoa que envelhece mas nem por isso deixa de venerar o que sempre venerou (
Afrodite), pelo contrário aperfeiçoa e intensifica esse sentido que poderá ou
não evoluir para o desejo e, quem sabe?, mesmo num solitário semi-D. Juan
gasto, para a capacidade de amar. Como se vai dizendo no texto é a luz, é o
calor é a água. Quando se envelhece, ao contrário do que reza a auto-castração,
estas capacidades e potencialidades crescem, até numa perspectiva metafísica.
Donde a presença no livro do ditado “para burro velho erva tenra”. Há um
sentido de sobrevivência ( ou seja de imortalidade) no Pintado que o faz
enfartar-se dos seus contemporâneos e procurar a carne jovem que não é mais do
que a metáfora do novo. A continuidade do desejo, ou o seu crescimento, que
pode ou não vir a correr, vem do seu instinto de sovrevivência e a sua
expressão espeiritual é o desejo de imortalidade, que se conseguirá caso
consiga amar.
“Tânia” poderá ser o nome duma próxima narração do Dr. Domingos Pintado.
Depois há o outro lado, o de Tânia, de que nada sabemos a não ser pela leitura
do Domingos, que pode estar cheio de paralaxes coitado... O Mingos poderá ser
para a Tânia um emprego, um gozo estrambótico por um velhadas simpático, um
segundo pai...um primeiro... mas um pai pode ser mais do que isso. Poderá ser
uma consolidação da sua realidade de mulher saída da adolescência, ou o
contrário, a realidade da adolescência? Tânia pode nem aparecer, mas pode
apaixonar-se pelo homem, porquoi pas? Será uma relação puramente intelectual ou
o charme do dr. últimamente esquerdeado funcionará a insinuar o corpo? E o que
são as coisas puramente intelectuais? Será o sexo impuro? A coisa
realizar-se-á? Haverá um milagre para o Domingos? Ou será como o milagre do
“Cisne Negro” do Mann? Falhará de um lado? de outro? Mas a Tânia deste livro já
não me pertence. Pertence a ti e aos leitores. Por isso, para já, não é as
minhas intenções mas sim as vossa realidades. Só voltará a ser minha quando a
retomar. O problema é que nem a Tânia se despiu a mim nem, que eu saiba, pelo
menos até hoje ainda não se despiu para o Minguinhos. Mas a coisa acontecendo,
se acontecer, saberei pela certa.
Agora quem é a Tânia? Uma adolescente a fazer-se mulher, todas e nenhuma, todas
e só uma, das que circulam na cidade e o escritor depara, conversa ou não
conversa, namorisca ou não namorisca, depois fecha os olhos ou deixa a mão
correr sobre o teclado, autónoma, criadora, louca e depravada por vezes e por
vezes muitas vezes...
5
Concluamos.
Aos presentes uma saudação.
(1) João Gaspar Simões
(2) Umberto Ecco
(Apresentação do livro «Pessoas, animais e outros que tais - narrações do Dr.
Domingos Pintado» (Ed. Campo das Letras), de Pedro Baptista - Café Majestic,
Porto, 22 de Setembro de 2006)
* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas e pós graduado em tradução
literária, é autor de diversos textos sobre literatura (Raul Brandão, António
Rebordão Navarro, Miguel Torga, etc.), sobre arte (Irene Vilar, Maria Leal da
Costa, etc.), sobre história do Porto (ocidental, sobretudo) e ainda de
intervenção cívica (o Porto, a política nacional, a Galiza, etc.). É director
da Orfeu, a livraria portuguesa e galega de Bruxelas, e é director do jornal e
grupo cultural O Progresso da Foz, Porto.