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Agenda do Porto
20 juin 2009

DANCEM!09 Ciclo de dança contemporânea|25 de Junho a 12 de Julho no TNSJ e TeCA

tnsj

DANCEM!09

Ciclo de dança contemporânea

25 Junho a 12 Julho



danc09


Entre 25 de Junho e 12 de Julho, o Teatro Nacional São João e o Teatro Carlos Alberto recebem um intenso programa de dança contemporânea com a apresentação da 6ª edição do ciclo Dancem!. Comissariado por Paulo Ribeiro, Dancem!09 reúne alguns dos mais recentes trabalhos de coreógrafos e companhias com a importância de Alain Platel, Marie Chouinard, Philippe Decouflé, Peeping Tom, Olga Roriz, Paulo Ribeiro e Né Barros.

 

O ciclo inicia no Teatro Carlos Alberto com a estreia nacional do tríptico Le Jardin, Le Salon e Le Sous Sol da autoria do colectivo belga Peeping Tom. Também no TeCA, a estreia absoluta de Story Case de Né Barros, viagem exploratória ao encontro de lugares vazios e de pessoas sem história. Ainda neste palco, a apresentação de Solo, autoria e interpretação de Philippe Decouflé, e Orphée et Eurydice, uma obra “poderosa” e “excessiva” concebida pela coreógrafa canadiana Marie Chouinard.

 

O programa para Teatro Nacional São João inclui o Paraíso e o Inferno de Olga Roriz. Segue-se Sombreros, um espaço cénico animado por sombras e projecção vídeo da autoria de Philippe Decouflé. De Alain Platel e do compositor Fabrizio Cassol chega-nos pitié!, a nova produção baseada na obra de A Paixão Segundo São Mateus de Bach. Por fim, sobe ao palco Maiorca, o espectáculo onde Paulo Ribeiro regressa “à essência que é criar dança à dimensão da música” tomando como ponto de partida os 24 Prelúdios de Chopin.

 

Sobre a escolha e o alinhamento dos onze espectáculos que integram o ciclo, o comissário esclarece: “a cada coreógrafo estrangeiro está associado um coreógrafo português. Tentamos cruzar contextos, estabelecer um contraponto entre a realidade nacional e internacional”. Para esta edição, Paulo Ribeiro apostou também na circulação dos espectáculos por outros palcos portugueses. Assim, pitié! irá ao Centro Cultural de Belém, nos dias 3 e 4 de Julho, Solo (10 e 11 de Julho) e Orphée et Eurydice (15 e 16 Julho), ao Teatro Viriato, em Viseu.

 

Finalmente, para as noites de 26 de Junho e 12 de Julho estão agendadas duas festas que prometem outras danças para os espaços do Teatro Carlos Alberto com a presença de vários DJs e VJs convidados.

Dancem!09

Teatro Nacional São João

Paraíso | Olga Roriz | [27 Junho] sábado 21:30

Inferno | Olga Roriz | [30 Junho] terça-feira 21:30

Sombreros | Philippe Decouflé | [3 + 4 Julho] sexta-feira + sábado 21:30

pitié! | Alain Platel | [7 + 8 Julho] terça + quarta-feira 21:30

Maiorca | Paulo Ribeiro | [10 + 11 Julho] sexta-feira + sábado 21:30

Teatro Carlos Alberto

Le Jardin + Le Salon + Le Sous Sol | Peeping Tom | [25 + 26 + 28 Junho] quinta + sexta-feira + domingo 21:30

Story Case | Né Barros | [3 + 4 Julho] sexta-feira + sábado 21:30

Solo | Philippe Decouflé | [6 + 7 Julho] segunda + terça-feira 21:30

Orphée et Eurydice | Marie Chouinard | [10 + 11 + 12 Julho] sexta-feira + sábado + domingo 21:30

comissário Paulo Ribeiro

produção TNSJ

Assinaturas Dancem!09

Onze espectáculos Desconto 50%

Cinco espectáculos à escolha Desconto 40%

Teatro Nacional São João

Plateia e tribuna 15€

1º Balcão e Frisas 12€

2º Balcão e camarotes de 1ª ordem 10€

3º Balcão e camarotes de 2ª Ordem 7€

Condições especiais

Grupos (+20 pessoas) € 10,00 Escolas e Grupos de Teatro Amador € 5,00 Cartão Jovem e Estudante desconto 50% Mais de 65 anos desconto 50% Quinta-feira desconto 50% Profissionais de Teatro desconto 50% Preço Família (agregados familiares compostos por três ou mais pessoas) desconto 50%

Teatro Carlos Alberto

Plateia 15€

Balcão 10€

www.tnsj.pt

Le Jardin

Dança

criação e interpretação Gabriela Carrizo, Franck Chartier, Simon Versnel

cenografia Pol Heyvaert

desenho de luz Gerd Van Looy

Filme

criação e interpretação Gabriela Carrizo, Rika Esser, Franck Chartier

com a participação de Simon Versnel, Isnel da Silveira, Nordine Benchorf, Heloise da Costa, Louis Clément da Costa, Eurudike De Beul, Ina Geerts, Sam Louwyck, Jan Paul, Bah Mamadou Halfi, Tina Pattama Soonthara, Darryl E. Woods

produção Peeping Tom (Bruxelas)

co-produtores Festival Perspectives Saarbrücken, Anno ’02 & De Kortrijkse Schouwburg, Ballet Preljocaj – Centre Chorégraphique National d’Aix-en-Provence

estreia [13Jun2002] Victoria (Gent, Bélgica)

duração aproximada [Filme 35’ + Dança 35’]

classificação etária Maiores de 12 anos

Le Salon

criação e interpretação Gabriela Carrizo, Franck Chartier, Samuel Lefeuvre, Simon Versnel e Eurudike De Beul (meio-soprano)

cenografia Pol Heyvaert

desenho de luz Gerd Van Looy

desenho de som Glenn Vervliet

dramaturgia Nico Leunen, Viviane De Muynk

produção Peeping Tom (Bruxelas)

co-produtores Tramway Glasgow, La Rose des Vents – Scène Nationale de Villeneuve-d’Ascq, Le Réseau France des CDC (Avignon, Dijon, Roubaix, Val-de-Marne, Toulouse, Uzès)

estreia [4Nov2004] La Rose des Vents (Villeneuve-d’Ascq, França)

duração aproximada [1:30]

classificação etária Maiores de 12 anos

Le Sous Sol

criação e interpretação Gabriela Carrizo, Franck Chartier, Samuel Lefeuvre, Maria Otal e Eurudike De Beul (meio-soprano)

consultoria artística Simon Versnel

sonoplastia Glenn Vervliet

produção Peeping Tom (Bruxelas)

co-produtores KVS (Bruxelas), Charleroi/Danses, Théâtre de la Ville (Paris), Trafó (Budapeste)

estreia [28Mar2007] KVS (Bruxelas, Bélgica)

duração aproximada [1:10]

classificação etária Maiores de 12 anos

Uma saga familiar divertida e pungente

Gwénola David*

Às escondidas, quase de soslaio. É assim que os Peeping Tom observam o mundo. Deslizando através das frinchas do consciente, nas dobras frouxas do quotidiano, onde secretamente se ouve o ruído do cafarnaum dos fantasmas e das nevroses comuns. […] Em Le Jardin, entalham as fronteiras turvas da normalidade, confrontando o exotismo adulterado de um night club suspeito com a confusão de um casal e de um homem velho, qualquer dos três colocado no recinto cheio de normas de uma modesta barraca de subúrbio. Vestígio serôdio do fausto burguês de outrora, Le Salon examina as derrotas da velhice e a ruína de uma família que luta contra os lençóis sujos de um presente falido. Terceiro painel da trilogia, Le Sous Sol escava o além-túmulo, no antro terroso em que os mortos andam às voltas com as recordações e não param de voltar a representar os fracassos do passado, bebida toda a vergonha. No encadeamento desta saga divertida e pungente, em que dança e teatro se revezam numa partitura implacável, revelam-se as fendas escancaradas de uma humanidade amarfanhada, simultaneamente coriácea e prazenteira, que caminha solitária por entre as esperanças naufragadas e as pequenas felicidades da vida. A gestualidade, brutal, elástica, surge através de rajadas extravagantes, deixando escapar os segredos germinados e as raivas recalcadas: o irreprimível indizível dos medos e dos arrebatamentos da existência.

* Excerto de “Une saga familiale drolatique et poignante”. www.theatredelaville.fr (2009).

Trad. Manuel de Freitas.

A emoção ao poder: um retrato dos Peeping Tom

Hildegard De Vuyst*

2002, início do ano. Uma caravana um pouco perdida nos vastos parques de estacionamento do Bottelarij. Frio e sujidade. Apesar de tudo, duas bailarinas, em fatos de banho, saem da caravana, e tomam um duche de água gelada debaixo de uma mangueira. Esta cena faz parte de Caravana, um projecto que se desenrola dentro e à volta de uma autocaravana, e resulta da iniciativa de performers que se conheceram nas produções de Alain Platel (nos les ballets C de la B). As produções que os reuniram acabaram as suas digressões, mas eles continuaram simplesmente a partilhar a necessidade de trabalhar uns com os outros, sem se preocuparem com subsídios ou outras ajudas. Caravana foi o trampolim para esta companhia.

O núcleo duro dos Peeping Tom é formado por Gabriela Carrizo e Franck Chartier. Ela é oriunda da Argentina e colabora na criação de La Tristeza Complice [1995]; ele vem de França e junta-se a La Tristeza Complice durante a digressão. Depois, ambos participam na criação de Iets op Bach [1998]. Em Wolf [2004], ela faz o papel de assistente de Alain Platel e ele é um dos vagabundos que trata dos cães. Ele colabora em produções da Needcompany, antes de trabalhar com Platel, ela faz o trajecto contrário. Os seus caminhos cruzam-se definitivamente graças à filha de ambos, Uma, que, pequenina, actuou em Le Salon, até se fartar dessa função e ser substituída por uma boneca.

Vários performers gravitam à volta deste núcleo formado por constelações mutantes. Eurudike De Beul, a meio-soprano flamenga, que faz parte do projecto desde o início, empresta depois a sua voz ao espectáculo Le Salon (nomeadamente na cena inesquecível em que destrói o piano tecla após tecla) e voltamos a encontrá-la em Le Sous Sol. O actor Simon Versnel, um antigo membro da Needcompany, junta-se à criação de Le Jardin e Le Salon, trazendo consigo uma experiência de vários anos, acumulada graças ao trabalho com Jan Lauwers e Grace Ellen Barkey. Samuel Lefeuvre também participa na criação de Le Salon e Le Sous Sol. É um bailarino espantoso, uma combinação rara de elasticidade e de atletismo e, enquanto benjamim da companhia, constitui uma aposta no futuro dançante dos Peeping Tom.

Independentemente da questão de saber quem mexe os cordelinhos no seio da companhia, o essencial é o rigor com o qual os Peeping Tom optam pela criação colectiva. Cada produção inspira-se na anterior, mas, ao mesmo tempo, cada uma parte sempre do zero. Dentro de um enquadramento caracterizado por limites muito largos, cada proposta é experimentada e submetida à avaliação de todos. Desembocar numa narrativa comum exige componentes sólidas; porém, uma vez atingido, o resultado é suportado por todos.

É verdade que muitos bailarinos se sentem estimulados e desafiados por coreógrafos que apelam à criatividade dos seus intérpretes. Porque não lançar-se num projecto pessoal, pensam logo a seguir inúmeros bailarinos? Contudo, muitas dessas iniciativas não sobrevivem, porque permanecem tributárias do seu mentor, e estão condenadas à síndrome do epígono. Aparentemente, os Peeping Tom possuem uma estrutura bem mais sólida.

A primeira produção oficial, Le Jardin, é um espantoso díptico: um filme caseiro, rodado numa discoteca escura – onde estranhas personagens de todas as espécies se investem na vida nocturna –, seguido de uma performance ao vivo, em que três personagens do filme regressam, evoluindo desta feita no cenário de um jardim cuidadosamente tratado. Será que Le Jardin mostra o dia e a noite da existência dessas personagens? Será que o filme é a experiência sonhada da sua burguesia reprimida? Ou será que é o passado ao qual se extirparam? Os fios condutores entre o filme e a performance ao vivo desencadeiam o trabalho de imaginação do espectador sem lhe dar respostas categóricas.

A seguir, Le Salon é uma representação sólida na qual os Peeping Tom se consagram a uma dramaturgia condensada: texto, música e dança entrecruzam-se, sem transição, segundo um conceito hiper-realista. As personagens são claramente elaboradas sem que o aspecto narrativo se torne preponderante. A família serve de pivot: relações entre casais, mas também entre gerações, entre pais e filhos. O beijo do casal Carrizo-Chartier na peça Le Jardin acontece de novo em Le Salon, mas, desta vez, a criança está entre os dois. A vida e o trabalho confluem. O “mais real do que o real” é quase a assinatura dos Peeping Tom.

O ponto de partida da nova produção, Le Sous Sol,  situa-se num lugar além morte. Que género de imagens podemos, ou queremos, receber desse lugar? Os códigos que gerem os comportamentos sociais desaparecem. O indizível torna-se dizível. Tudo é possível ou não? Em Le Sous Sol, Maria Otal entra em cena. Francesa com família na Bélgica, 80 anos, 48 quilos, bailarina. Reproduz a cena do beijo, com o jovem Samuel Lefeuvre. Será que se trata do seu companheiro morto? As fronteiras apagam-se. Um corpo, no fim de contas, não passa de um saco de ossos. Que encontros nos reserva o além? Um homem fica só no mundo “real”. Mas qual é o mundo mais real?

Os Peeping Tom são, na verdade, o Pedro Almodóvar do teatro dançado. Estranhas personagens ocupam o palco, figuras que evocam o mundo do circo, do music-hall e da feira. Os seus contornos são traçados com muito amor e humor perturbante. Os Peeping Tom apresentam ao público um travesti, uma anã, uma soprano lírica que não recua perante uma partida de catch, uma miúda ou uma bailarina muito velha e vulnerável. Histórias de declínio, de perda, de confusão humana a propósito da sexualidade associam-se, sem dificuldade, às proezas físicas e à poesia repleta de imagens de um grande requinte. Mas o elo mais óbvio com a obra do realizador Almodóvar é a tónica posta na emoção e no melodrama. Mágoa, ternura e beleza dominam, mesmo nas histórias mais cruéis.

* “L’émotion au pouvoir: un portrait de Peeping Tom”. www.fransbrood.com (2007).

Trad. Regina Guimarães.

“Na morte, tudo se pode dizer amavelmente”

Steven De Belder*

Steven De Belder Quando começaram a ensaiar Le Jardin, já encaravam o trabalho como uma trilogia?

Peeping Tom Em Le Jardin, já queríamos pôr o salão no cenário, para que pudéssemos ver as pessoas a sair do salão para o jardim. Mas não tínhamos dinheiro para fazer isso. Assim, retomámos essa ideia do salão na peça seguinte e pensámos: “OK, agora vamos descer à cave”. De facto, no fim de contas, acabamos por já não estar propriamente numa cave, mas num quarto inundado de terra. Partimos de uma novelazinha de Dostoievski que se chama Bobok. Trata-se de pessoas mortas, nas suas sepulturas, em pleno cemitério, que falam entre si. E ainda há um ser vivo que se encontra no cemitério e que começa a ouvir os mortos a falarem uns com os outros. Há mais uma pessoa que morre e é enterrada; eles reúnem-se e fazem os ajustes de contas relativos às suas vidas. Vamos tentar recriar uma espécie de mundo em que, na morte, tudo é possível, tudo se pode dizer amavelmente: já não se tem nada a perder, logo já não se tem medo.

Trata-se, então, de uma situação que é, na verdade, anti-dramática, porque não há suspense ou evolução, nem resolução num determinado sentido...

Pois, mas de facto é muito difícil de concretizar! Entre nós, quando uma pessoa censura outra é porque lhe quer fazer mal, ou então por ironia. Portanto, é muito difícil ser amável quando se censura.

Será que em Le Sous Sol também há um elo com o filme que é mostrado em Le Jardin, cujas imagens mostram uma discoteca que também é uma espécie de mundo subterrâneo?

Em Le Jardin, é um pouco uma visão de pesadelo, como um sonho mau, com personagens estranhas. Em Le Sous Sol, vai ser mais alegre, mais leve. Estamos mortos, mas somos seres humanos normais. Depois da atmosfera bastante pesada em Le Salon, apetece ser light, mesmo que ainda não tenhamos a certeza de conseguir cumprir esse objectivo. Não se sofre: está-se morto, portanto não se tem fome ou dor, é mais fácil dar a volta às coisas, introduzir ironia, e mesmo leveza. Em Le Jardin e Le Salon, as pessoas estão muito sós com os seus problemas, ainda que sejam uma família. Aqui, ao ver o conjunto de materiais de dança que já criámos, toda a gente precisa de contacto, todos precisam de estar juntos.

O trabalho dos Peeping Tom situa-se num campo pouco nítido, entre a dança e o teatro. Mas o actor Simon Versnel, presença forte em Le Jardin e em Le Salon, não participa desta vez. Será que isso vai tornar as coisas mais dançantes do que teatrais?

O Simon não vai estar em palco porque fazemos muitas digressões e ele quer viver. Mas está presente durante o processo de criação, porque traz todo o lado teatral e é um pilar dos Peeping Tom. E, mesmo assim, ele vai estar presente na peça, através da banda sonora, que terá grande importância, como no cinema. Estaria vivo, na verdade seria o único a ter ficado vivo lá em cima; os outros morreram todos – mas, como não é visível, também se torna um pouco como um espectro. Além disso, continua a haver a meio-soprano Eurudike De Beul. Ela sempre cantou connosco, mas agora também acompanha o processo de criação, e também produz coisas que são mais teatrais. O equilíbrio entre teatro e dança vai ser semelhante. Mas trabalhamos a dança de maneira completamente diferente: muitos duos, imensas coisas muito coladas, muitos elementos sexuais ou sensuais.

Durante o processo de criação, quando desenvolvem pequenas cenas, fragmentos, decidem de antemão que vão escolher determinado “meio”: para isto, será mais a dança ou mais um bocado de texto?

Frequentemente, lança-se uma ideia e toda a gente toma 30 minutos para ir reflectir no seu cantinho; a seguir, cada um mostra o que encontrou. Por vezes é um texto, por vezes é uma frase de movimento, ou outra coisa, não é algo que se decida antecipadamente. Começamos com composições, propostas sobre uma ideia. Quando continuamos a desenvolver as coisas de que gostamos, elas podem tomar outras direcções: um elemento teatral pode ser desenvolvido pelo movimento, ou vice-versa...

E como é que a coisa funciona enquanto colectivo durante a criação? É 100% colectivo ou é mais dirigido por vocês os dois [Gabriela Carrizo e Franck Chartier]?

É um colectivo. Claro que, num grupo, há sempre motores que propõem coisas, que fazem girar a máquina, e há outros que são mais cool, que reflectem mais. Neste momento, o colectivo é sobretudo composto por nós e pelo Samuel Lefeuvre, porque passamos mais tempo no estúdio juntos. A Eurudike não está sempre cá, o Simon também não, e quanto à Maria Otal, a bailarina butô de 80 anos, é a primeira vez que trabalha connosco, portanto é preciso guiá-la um pouco. Mas quando estamos todos juntos, cada um traz ideias absolutamente originais e importantes. Durante o processo, todos procuramos os materiais, logo cada um faz o que quer, procura o que quer. Depois, mostram-se os resultados e cada um diz aquilo de que gostou – e tentamos então concentrar-nos nos aspectos positivos, porque durante o período de criação é fácil ficar-se deprimido, e a gente tenta não se deixar ir abaixo. Marcamos tudo o que os outros gostaram e depois, com aquilo de que tu mesmo gostaste, decides. Depois, começamos a trabalhar uns com os outros, para fazer duos ou trios. E, a seguir, para a montagem, cada um faz a sua linha dramatúrgica consoante todos os solos, duos e trios em que está envolvido. Juntamos então as cinco linhas e começamos a montagem da peça. Experimentamos todas as variantes, filmamos tudo, depois visionamos, e decidimos acerca da estrutura final. É um longo processo, por isso é que levamos cinco meses! […]

* Excerto de “Peeping Tom”, entrevista concedida por Gabriela Carrizo  e Franck Chartier. www.daprice.be (2007).

Trad. Regina Guimarães.

Paraíso

selecção musical e direcção Olga Roriz

cenografia Olga Roriz, Pedro Santiago Cal

figurinos Olga Roriz

desenho de luz Celestino Verdades

arranjos musicais Renato Júnior

interpretação Catarina Câmara, Rafaela Salvador, Sylvia Rijmer, Sara Carinhas, Bruno Alexandre, Pedro Santiago Cal

músicas Rocío Jurado | George Gershwin | Nino Rota | Boris Vian | Patsy Cline | Chavela Vargas | Dean Martin | Ben Webster | Pascal Comelade | Edith Piaf | Leonard Bernstein | Frank Sinatra | Orquestra Universitária de Tangos | Carmen Miranda | Marlene Dietrich

cantado ao vivo “Le Déserteur”, de Boris Vian – Rafaela Salvador | “Milonga del Mono”, de Alejandro Dolina – Catarina Câmara | “My Funny Valentine”, de Rodgers & Hart – Rafaela Salvador | “Je Ne t’Aime Pas”, de Kurt Weill – Sylvia Rijmer | “Homens e Mulheres”, de Ana Carolina – Sara Carinhas | “Bang Bang”, de Nancy Sinatra – Sara Carinhas | “Cantigas do Maio”, de Zeca Afonso – Pedro Santiago Cal

co-produção Companhia Olga Roriz (Lisboa), Teatro Nacional de São Carlos (Lisboa), Festival Música em Leiria

estreia [31Mai2007] Teatro José Lúcio da Silva (Leiria)

duração aproximada [1:35]

classificação etária Maiores de 12 anos

Inferno

selecção musical e direcção Olga Roriz

cenografia Olga Roriz, Pedro Santiago Cal

figurinos Olga Roriz

desenho de luz Clemente Cuba

desenho de som Sérgio Milhano

arranjos musicais José Avelino

interpretação Catarina Câmara, Rafaela Salvador, Sylvia Rijmer, Bruno Alexandre, Pedro Santiago Cal

músicas Cabruêra | Klezmatics | Pink Martini | Madonna | Amália Rodrigues | Billie Holiday | Marlene Dietrich | Jacques Brel | Kroke | Hougu and Freylekhs

cantado ao vivo “Homem com H”, de Ney Matogrosso – Catarina Câmara | “What Ever Lola Wants (Lola Gets)”, de Sarah Vaughan – Sylvia Rijmer | “Can’t Help Falling in Love”, de Elvis Presley – Pedro Santiago Cal | “Quien Será?”, de Arielle Dombasle – Rafaela Salvador | “Senhas”, de Adriana Calcanhotto – Coro

co-produção Companhia Olga Roriz (Lisboa), Centro Cultural Vila Flor (Guimarães)

estreia [21Jun2008] Centro Cultural Vila Flor (Guimarães) 

duração aproximada [1:50]

classificação etária Maiores de 12 anos

Inferno_5_Rodrigo_de_Souza

É tão difícil escolher uma música...

Mónica Guerreiro

E se uma criadora decidir trabalhar sobre o poder dramatúrgico do cliché? E se o fizer confiando no seu instinto para seleccionar as melodias que irão compor uma história, prescindindo de qualquer outra “muleta” narrativa? E se encontrar neste dispositivo razão para conceber não um mas dois espectáculos – que formam um díptico?

O musical, esse género teatral refém de todas as causalidades e teleologias, atraiu Olga Roriz para um remoinho de referências e de canções, cenas e monólogos à boca de cena, que se sucedem gerando momentos de dramatismo e de humor. Não parece existir outro sentido condutor da acção além da disposição para encenar situações e gagues relacionados com o mundo do espectáculo. No processo, a coreógrafa proporciona aos intérpretes magníficas actuações individuais e jogos de grupo igualmente grandiosos, com uma evidente riqueza de expressões e registos, induzindo no espectador o mesmo leque de emoções que experimenta um frequentador de musicais. E a sua dose de sentimentalismo, também.

De várias maneiras pode ser formulada a pergunta, mas a resposta será sempre oblíqua. E parcial. Desde logo porque a ideia de teatro musical, com as suas forças e fraquezas (entre as quais a literalidade e a ligeireza), parece conviver mal com a metateatralidade, o que leva a pensar que a pretensão de desenhar um espectáculo em homenagem a uma forma de cultura popular – que por si só já é uma representação, frequentemente uma caricatura – é arriscar demasiado. Por outro lado, é conhecido o pendor dramático da criadora: parte da sua formação decorreu num teatro de ópera, onde mais tarde experimentou encenar (Perséfona, de Stravinski, em 1997), e coreografou já episódios inesquecíveis (como Casta Diva ou Isolda) cujas bandas sonoras estão carregadas de história e teoria do espectáculo. Também o burlesco não lhe é estranho, nem o drama contemporâneo. Assim, a sua abordagem ao musical poderia tanto privilegiar uma linguagem operática ou manifestar-se mais pela via do cabaré. Mas Roriz não ensaia opereta nem vaudeville nestas duas criações: antes junta vários elementos do seu repertório pessoal (intérpretes generosos, fisicalidade enérgica e voluptuosa, selecção musical de gosto irrepreensível, conhecimentos profundos de etologia) para montar um “entretenimento” onde se identificam trejeitos daquelas formas. Consegue assim desenvolver um modelo de espectáculo autoral, com o cunho do seu estilo, que alterna canções e recitativos com cenas de violência ou de ternura, de festa ou de solidão, e momentos em que os bailarinos “acompanham” as melodias com o assobio, com risos nervosos ou com séries de battements dignas do melhor cancan, esfuziante e erótico, mesmo estando sentados. Não há interditos nesta celebração: brinca-se com as audições e com as acrobacias, com a artificialidade e inconsequência das relações, com os duetos de dança padronizados, com a euforia estonteante do karaoke (e percebe-se que os bailarinos retiram prazer do acto de cantar), com os estereótipos vigentes no musical, “utopias de felicidade e heterossexualidade”, e, principalmente, com a possibilidade de cada uma das canções (de Sarah Vaughan a Kurt Weill e Frank Sinatra, passando por Amália e Zeca Afonso, mas também muito pelo Brasil: Ney Matogrosso, Adriana Calcanhotto e Ana Carolina estão por lá) dizer qualquer coisa de revelador sobre as nossas vidas. Neste ponto em particular reside a pertinência deste projecto no conjunto de criações recentes da coreógrafa.

Paraíso (2007) e Inferno (2008) surgem num momento em que Roriz está prestes a lançar-se num intenso ciclo de reinvenção das origens, ao remontar Isolda com a Companhia Nacional de Bailado 19 anos depois de o ter feito com o Ballet Gulbenkian, estrear Nortada no âmbito de uma residência artística na sua terra natal, Viana do Castelo, e preparar A Sagração da Primavera, com 26 bailarinos, previsto para daqui a um ano. Não deixa pois de ser um gesto programático, claramente enunciador de uma fase que termina, este de figurar em espectáculo as personagens, a memória e os tiques do teatro e do cinema musical através de uma sequência de cenas, à laia de “números” avulsos e não relacionados, estrutura que vimos reconhecendo nos seus trabalhos desta década. Porque, nestes últimos anos, peças como Código MD8 (2001), Não Destruam os Mal-Me-Queres (2002), Jump-up-and-kiss-me (2003), Confidencial (2004), O Amor ao Canto do Bar Vestido de Negro (2005) ou Daqui em Diante (2006) – independentemente das motivações e matérias tematizadas em cada uma delas – apresentam de forma nítida essa característica e atribuem à selecção musical (colagens assinadas pela criadora) um papel proeminente, de composição de sentido dramatúrgico. São raros os momentos de silêncio, o que Paraíso e Inferno vêm reiterar. As canções são coordenadas segundo o temperamento que quer dar às cenas, impondo tanto os ritmos festivos da música tradicional grega como as melodias comoventes do cancioneiro norte-americano, interrompidas por monólogos ou prolongadas por vários minutos. As sequências corais são excepcionalmente eloquentes, ao beneficiarem do efeito de acumulação da energia de várias vozes e vários corpos que cantam em uníssono. Mas é também assinalável a intensidade com que o elenco entrega as cenas individuais, algumas autênticos exercícios de esforço e dificuldade técnica.

As duas criações que se apresentam no Dancem!09 têm uma organização semelhante e perseguem uma alegoria e um sentimento que se poderiam dizer afins: daí atrever-me a considerar este díptico como uma criação em duas partes, em vez de duas criações autónomas. Não obstante, algumas observações podem ser aduzidas quanto à personalidade específica de cada uma. Se em Paraíso se podem dizer preponderantes os momentos cómicos, a verdade é que também em Inferno eles não deixam de estar presentes (a repetente personagem “Cláudia”); bem assim, as cenas mais intimistas (personificadas por Pedro Santiago Cal) parecem ter mais profundidade em Paraíso, ao passo que Inferno aposta mais claramente no exotismo e no júbilo. Os projectores de cinema estão sempre lá, muito visíveis, introduzindo (ou recordando) a ideia de que o ambiente é de espectáculo e que o cenário se lê potencialmente como plateau. Esta premissa é analisada e trabalhada, nas duas propostas, de forma diferente. Em Paraíso, o espaço cénico é despido e totalmente aberto, habitado apenas por poltronas e pés de microfone. A cena em Inferno, mais espalhafatosa, é envolta em gradeamento e arame farpado, sugerindo aprisionamento; mas, decorrido sensivelmente metade do espectáculo, o espaço é transformado e assume a situação de “palco”, que manterá até ao final. Essa imagem suavizada conduz-nos até à última cena, um plácido piquenique repartido entre bailarinos de vermelho e um lobo de sobretudo. Depois dos vestidos de gala, das lantejoulas e dos confetes, fica a melancolia.

Estreia Absoluta

Story Case

concepção e coreografia Né Barros

fotografia Cesário Alves

música Alexandre Soares

desenho de luz José Álvaro Correia

dispositivo cénico Teresa Grácio

edição vídeo Hélder Luís

textos Adalberto Alves, Maurice Blanchot

interpretação Joana Castro, Pedro Rosa

co-produção Balleteatro (Porto), TNSJ (Porto)

duração aproximada [45’]

classificação etária Maiores de 12 anos

“Ambivalência documental e ficcional”

Né Barros

Story Case trata de lugares vazios e de pessoas sem história, no sentido de uma história ainda não vista, ainda não realizada. Tal como o corpo na dança, os indivíduos em Story Case surgem-nos e é no decorrer do tempo que os vamos documentando até eles se tornarem personagens. Fotografar essas pessoas faz com que passem a protagonistas e se criem todas as condições para que uma história se abra aos olhos de quem observa. Esta ambivalência documental e ficcional caracteriza o campo de investigação e de explorações deste projecto que reúne a dança e a fotografia, e que encontra no deserto o seu motivo inspirador. Como diz Maurice Blanchot: “O deserto não é ainda nem o tempo, nem o espaço, mas um espaço sem lugar e um tempo sem procriação. Ali, pode-se somente errar, e o tempo que passa não deixa nada para trás de si, é um tempo sem passado, sem presente, tempo de uma promessa que é apenas real no vazio do céu e da esterilidade duma terra nua onde o homem nunca está ali, mas sempre de fora”. Mas para além da metáfora da representação do corpo e desta descolagem do real para produzir outra realidade poética, o deserto é momento vivido e percorrido. Nas palavras de Adalberto Alves, no deserto chegamos “a ouvir o ritmo da respiração que é o reflexo do bater do coração”.

“Edição do olhar sobre o avistado”

Adalberto Alves*

Diz um ditado do deserto que um homem viaja sempre à frente de si mesmo. Lá, na solidão, somos sempre sombras banhadas pelos astros. Ora o sol nos fita de perto, esbraseando-nos, ora lua e estrelas nos olham desde o firmamento, esmagando a nossa pequenez com sua luz distante. As areias são um mar de tempo, ilimitado mas finito, à imagem do cosmos.

Avançam e recuam, caprichosamente, sem destino conhecido. Porém, como dizem os tuaregues, no fim da areia há sempre uma montanha. Jogos de luzes, sombras e ventos descobrem seios e torsos de dunas que o beduíno transforma em poesia. É um domínio encantado, mais do que lar, porque, para os beduínos, a casa é o túmulo dos vivos.

No deserto nunca paramos. Mesmo se detemos o olhar buscam-se horizontes de oásis e miragens. Lá somos fragilidade em movimento mas, além da nossa dimensão, alcançamos outra, mais serena e alta. Essa flor que, sem o ser, é desolação, como o aloendro que se agarra aos seixos dos uedes: brota a consciência de sermos mais um grão apenas, à beira de se volver em pó. Quanto vemos ou sentimos não passa de edição do olhar sobre o avistado, a par das visões que outros seres experimentam na lonjura.

* Excerto de “O deserto e a viagem”. In Tiago Marrecas [et al.] – Bouzean. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005. p. 47.

Sombreros

direcção artística Philippe Decouflé

criação musical Brian Eno, Sébastien Libolt

textos Claude Ponti

desenho de luz Patrice Besombes assistido por Begoña Garcia Navas

figurinos Jean Malo, Philippe Guillotel, Morgane Olivier

cenografia Patrice Besombes, Philippe Decouflé

criação de imagens Olivier Simola, Christophe Waksmann, Laurent Radanovic, Roméo Ricard, Dominique Willoughby

som Jean-Pierre Spirli / Claire Thiébault

música composta e gravada por Brian Eno (Published by Opal Music, London © Opal Ltd., 2006)

excertos do filme Aurora, de F.W. Murnau – Courtesy of Twentieth Century Fox

interpretação Leïla Pasquier, Clémence Galliard, Sébastien Libolt, Alexandra Naudet, Manon Andersen, Christophe Salengro, Flavien Bernezet, Christophe Waksmann, Bertrand Belin, Yannick Jory, Olivier Daviaud

produtor delegado Compagnie DCA – Philippe Decouflé (Saint-Denis)

co-produção Théâtre National de Chaillot (Paris), Grand Théâtre de Luxembourg, Théâtre de Nîmes, La Coursive – Scène Nationale de La Rochelle, TorinoDanza, Sadler’s Wells (Londres)

estreia [12Out2006] Théâtre de Nîmes (França)

duração aproximada [1:15]

classificação etária Maiores de 12 anos

“O primado do artesanato”

Rosita Boisseau*

[…] Esta peça assemelha-se a um insólito amontoado, onde descobrimos um latino, picante como um cacto, que se cruza com obscuros heróis portadores de sombreiros e com a música do compositor Brian Eno.

Mas temos ainda, em torno do tema das sombras tão grato a Decouflé, alguns gags de peso, largados por um miúdo mal comportado que não consegue conter-se, jogos de palavras divertidos e belas imagens projectadas. O fascínio de Philippe Decouflé pelo vídeo explode neste espectáculo a ponto de invadir muito rapidamente o palco. A ponto também de suscitar algumas divagações que corroem o impacto de alguns efeitos visuais. Os corpos reais perseguem as suas sombras interpretadas por duplos-bailarinos (o espectro de Peter Pan anda por ali) e dialogam com projecções em incessantes vaivéns. Se a dança se limita a um repertório de gestos muito referenciados, a perseguição das imagens, em contrapartida, é desenfreada.

A sofisticada equipa de videastas, por vezes também bailarinos, composta por Olivier Simola, que recentemente colaborou com Mikhail Baryshnikov, por Christophe Waksmann, Laurent Radanovic e Roméo Ricard, desenvolve uma paleta de invenções palpitante. Manipulando câmaras à vista, arrancam o corpo às suas três dimensões para o fazer explodir em todos os sentidos. Nos ecrãs que sobem e descem, percepcionamos uma bailarina de corpo inteiro, mas também em pormenor, em grande plano, vista em picado, em contra-picado, simultaneamente.

O aspecto “trabalho entre amigos”, que se desunham para concretizar os seus improváveis sonhos, salta à vista em Sombreros. O pequeno número de participantes – colaboradores de longa data como Christophe Salengro – faz deslizar a peça para o terreno do prazer do convívio, sem outra ambição que não a de divertir e divertir-se, mantendo-se as pessoas envolvidas fiéis a si próprias. Algo de modesto emana de Sombreros, uma fragilidade que realça o gesto quotidiano do trabalho.

Em Decouflé, observamos o primado do artesanato. Uma certa nostalgia do cinema mudo, da época em que o teatro se cumpria tão-só com um lençol branco e duas lanternas de bolso para fazer surgir um fantasma vindo do fundo de um bosque, aflora também. Sobre as composições para piano de Sébastien Libolt, em directo, o romantismo de Philippe Decouflé emerge para logo ser submerso pelos salpicos de um grande mergulho com um fato de banho dourado numa piscina virtual. “Com que sonham as piscinas?”, pergunta então o herói sombrio enquanto trabalha para o bronze.

* Excerto de “La course aux images de Philippe Decouflé”. Le Monde (14 Oct. 2006).

Trad. Regina Guimarães.

“A três dimensões, é de carne que se trata”

Bernadette Bonis*

[…] Bernadette Bonis Sombreros anuncia-se como um melodrama, género popular por excelência!

Philippe Decouflé Adoro o melodrama! Não sei se vou conseguir, mas trabalhámos elementos melodramáticos. Sombreros apresenta-se sobretudo como uma síntese de coisas que ando a aprofundar desde há anos. Cada vez mais fascinado pela luz, logo pelas sombras, decidi consagrar-lhes um espectáculo. Trabalhei minuciosamente durante dois anos com a minha equipa, sempre a mesma para que fosse simultaneamente eficaz e agradável. A cumplicidade é essencial.

[…] Há um fio narrativo neste melodrama em três actos?

Não. A vantagem da dança é poder dispensar o fio narrativo, então porquê acrescentar esse estorvo? É possível construir coisas estruturadas sem que sejam de ordem narrativa. Mesmo assim, existem alguns fios.

Será mais um fio plástico do que narrativo?

Sem dúvida. Passa-se da segunda para a quarta dimensão, de uma imagem plana para uma imagem em relevo e, finalmente, para uma imagem que é suposta explodir, ao mesmo tempo, do preto e branco para a cor, e por aí fora.

O primeiro acto, a preto e branco, é uma entrada na matéria?

Mais do que isso. Vou falar de mim, visto que danço. Com Solo [2003], redescobri o palco e o maravilhoso prazer de dançar. Com 44 anos, começo a ser um velho bailarino, mas tenho mesmo vontade de dançar. Em Solo, estou em plena luz, exponho-me, é como que um desnudamento. Aqui, faço o contrário, também é interessante, sou uma sombra, vestido, pintado de preto.

Como os marionetistas do bunraku?

Sim. No sentido estrito, há bailarinos que têm papéis de sombras ao lado dos outros.

Como em Shazam! [1998], há ecrãs, enquadramentos, desenquadramentos?

Sim, continuo a trabalhar esse aspecto visual muito importante para mim. Ao mesmo tempo que volto à dança, tento fazer uma espécie de espectáculo total, utilizando tudo quanto é utilizável num teatro. Aquilo que me agrada é inventar, experimentar. Improvisámos muito e disso restam belos fragmentos um pouco por toda a parte. No último período de ensaios, é preciso escrever a dança, e aí custa-me muito fixar, gostava que a escrita também ficasse em perpétuo movimento. Acho que o espectáculo será muito evolutivo ao longo do tempo.

O segundo acto é em relevo: corpo, carne, dança. Mais dança ainda?

É isso mesmo. A três dimensões, é de carne que se trata. Ao mesmo tempo, encontrei uma coisa que faz com que não se saiba muito bem em que sentido se vê o que se olha. Não se sabe se é verdade ou não.

A sua dança, mais do que uma pesquisa do belo movimento, joga com a bizarria e abre para o imaginário...

Pode-se dizer que sim. Cada vez mais regresso à dança, mas não à performance técnica. Os bailarinos com quem trabalho têm todos mais de 30 anos e não dão cinco voltas pelos ares. Mas a intenção não é essa, portanto pouco importa. Continua a haver a Alexandra Naudet, maravilhosa depositária da beleza, da justeza, uma espécie de perfeição que nos permite, a nós rapazes, fazer outra coisa. Não precisamos de ser belos...

O terceiro acto aproxima-se da ficção científica, um outro género popular?

Absolutamente. Há muito tempo que me apetece fazer um bailado de ficção científica. Graças aos efeitos visuais, as personagens multiplicam-se, o espaço explode... Esse trabalho bastante formal desdobra o movimento, amplifica-o, confere-lhe uma dimensão pasmosa. E, contrariamente ao que se julga, eu utilizo processos antigos, do início do teatro, do cinema, que existem desde que a tela existe! Uma data de pequenas artimanhas. Não utilizo meios extraordinários.

[…] Porquê o título Sombreros?

É um título com muitas gavetas, como eu gosto. Contém um sombrio herói e até Eros lá cabe dentro... O título sugeriu-me a ideia de uma sequência western, e não consigo dar-lhe a volta. Logo à partida, o Christophe Salengro desenvolveu uma personagem mexicana com um sombreiro, mas sem guitarra, e espero que ele tenha mesmo recomeçado a treinar ukulélé…

* Excertos de “Je suis foncièrement indépendant”. Danser (Oct. 2006).

Trad. Regina Guimarães.

Solo

direcção artística e interpretação Philippe Decouflé

música Joachim Latarjet

vídeo Olivier Simola

desenho de luz Patrice Besombes

desenho de som Claire Thiébault

produção Compagnie DCA – Philippe Decouflé (Saint-Denis)

co-produtores Grand Théâtre de Luxembourg, Festival de Danse de Cannes

estreia [1Jul2003] Festival Grec (Barcelona, Espanha)

duração aproximada [1:15]

classificação etária Maiores de 12 anos

“Danço, logo existo”

Philippe Decouflé dança aqui na primeira pessoa. Mas ele não coreografa o seu ego. Dá-nos fragmentos de existência e sensações em que qualquer um pode esboçar o seu próprio retrato. O seu Solo é um “eu” de baloiço, entre ele e nós. A sua vida, a sua obra? Isso não interessa. O Solo é muito vagamente autobiográfico. Mas fala ao coração humano. Imaginem então dez dedos filmados em grande plano, ou seja, duas mãos ambulantes que andam à volta e marcam o tempo. Imaginem ainda que um festival de câmaras e ecrãs caleidoscopam Decouflé até ao infinito. Ei-lo transformado em mestre de ballet aquático em que constrói, só ele, uma assombrosa chusma de beldades em fato de banho. E é apenas o princípio, o espectáculo continua… “A dúvida habita-me”, explica o coreógrafo no início de Solo. Um especialista na questão e no tema, René Descartes, dissera-o antes dele: “Eu não sou este conjunto de membros a que se chama corpo humano”. Danço, logo existo, é o incontestável contributo que Decouflé traz à filosofia.

www.cie-dca.com (2009).

Trad. Manuel de Freitas.

“A dúvida habita-me”

Rosita Boisseau*

Sozinho em cena! Sozinho? Não propriamente. Envolvido por projecções luminosas, duplicado por sombras chinesas, Philippe Decouflé, no fundo, apenas conta uma história: o seu frente a frente, sempre diferido, com a realidade. Estamos em Abril de 2003. O coreógrafo confronta-se, pela primeira vez, com esse exercício audacioso que é o solo. Tem 43 anos, 20 anos de trabalho e umas 20 peças para trás, um sucesso internacional. Quem é ele? Que espera ainda de si, da dança, do espectáculo? Que necessidade alimenta os seus projectos? Encostado a um ecrã branco, no meio de um dispositivo tecnológico modesto mas complexo pela sua utilização, o artista põe em órbita um turbilhão de imagens das quais ele é o coração ardente. Ei-lo que aperta a mão ao seu duplo e, a seguir, multiplica-se de modo exponencial. Dezenas de Decouflé não tardam a nadar uns atrás dos outros, a ponto de submergirem o bailarino numa vaga que prolifera. Paradoxo de uma época: motor das imagens que o rodeiam, o homem acaba por se perder nos respectivos reflexos. O real emaranha-se na artificiosa rede da virtualidade e o homem acaba por ser comido vivo. Suave alienação, prodigiosa ilusão.

Durante os ensaios, no palco da Chaufferie de Saint-Denis onde se encontra instalado desde 1993, Philippe Decouflé conta com uma equipa de colaboradores fiéis que o compreendem sem que ele tenha de fornecer explicações. Pouco prolixo, refractário à linguagem corrente, prefere a comunicação muda, a que passa pelo conhecimento intuitivo do outro. Olivier Simola no vídeo, Patrice Besombes na luz, Pierre-Jean Verbraeken na cenografia, fazem parte dos que percebem depressa, sempre à espreita das pistas que o coreógrafo vai abrindo, à medida que o trabalho avança. Mergulhados na penumbra, cada um deles refina o seu contributo pessoal, todos eles absorvidos nos múltiplos ajustes de uma encenação video-coreográfica gradualmente inventada em conformidade com os desejos do artista. Discussão de grupo acerca dos desenvolvimentos possíveis de uma situação, sobre a resolução de um bloqueio, avança-se devagar. O ritmo é o de artesãos que mexericam, fabricam, testam e, por vezes, encontram soluções. Patrice senta-se no lugar de Decouflé, frente a um caleidoscópio, e desloca, nas palmas das mãos em concha, uma escultura de vidro, observando as variações das cores num ecrã de controlo. Depois, matiza os tons acidulados das luzes que recortam o ecrã. Rosa púrpura, azul-turquesa, verde amêndoa. A uns dias da estreia, a atmosfera é calma. Sente-se um mesmo fluxo de concentração circular entre todos, impregnados que se encontram pela postura do coreógrafo. Sonho, impossível, mas sempre com as mãos na massa. “Preciso de entrar agora”, declara Decouflé. “Apetece-me ver como vou dançar com os meus clones.”

Este solo devia ter-se intitulado Le doute m’habite. Dado como dúbio, invendável e quase impossível de pronunciar sem um sorriso.1 Contudo, perfeitamente coerente com a linha do artista. Frontal mais enviesada por uma ironia que rasura imediatamente a gravidade da confidência. A dúvida habita-me, o meu pénis posto em causa, etc. Como que em surdina, nesta peça, Decouflé revela-se muito mais do que pensava. Mas, precisamente, não ao nível que ele julgava: o folhear do álbum de fotografias pessoal, “o papá, a mamã, o meu irmão, a família, as minhas duas filhas”. Nas dobras múltiplas de algo semelhante a um origami visual, ele murmura a impalpável realidade do ser humano, versátil, movediça, como o mundo à sua volta. Uma simples mudança de ângulo e a vida vacila. É pois impossível captar a menor parcela de verdade sem que ela seja imediatamente objecto de controvérsia. Perseguindo ininterruptamente o real, o solo oferece uma ilustração desfasada. Também aponta para o desejo de vertigem e para o medo da dissolução. Se a vida é um engano, mais vale sacar dela uma maravilhosa miragem. Tarefa que este apaixonado pela ilusão se esforça por sofisticar desde há muito. Questão de sobrevivência.

1 Em francês, a obscenidade é óbvia, já que m’habite,  habita-me, soa como ma bite, o meu pénis... (Nota da tradutora)

* Excerto de “Parcours. De Vague Café à Shazam!, l’ascension tranquille d’un rêveur”. In Philippe Decouflé. Paris: Textuel, cop. 2003. p. 9-10.

Trad. Regina Guimarães.

pitié!

concepção e direcção Alain Platel

criação e interpretação Elie Tass, Emile Josse, Hyo Seung Ye, Juliana Neves, Lisi Estaras, Louis-Clément Da Costa, Mathieu Desseigne Ravel, Romeu Runa, Rosalba Torres Guerrero, Quan Bui Ngoc

cantores Melissa Givens (soprano), Maribeth Diggle (meio-soprano), Serge Kakudji (contratenor), Magic Malik (voz, flauta)

música interpretada por Aka Moon (Fabrizio Cassol saxofone; Michel Hatzigeorgiou baixo fender; Stéphane Galland bateria, percussão; Sanne Van Hek trompete; Philippe Thuriot acordeão; Lode Vercampt violoncelo; Renaud Crols violino)

música Fabrizio Cassol (baseada em A Paixão Segundo São Mateus, de J.S. Bach)

dramaturgia Hildegard De Vuyst

dramaturgia musical Kaat Dewindt

cenografia Peter De Blieck

figurinos Claudine Grinwis Plaat Stultjes

desenho de luz Carlo Bourguignon

desenho de som Caroline Wagner, Michel Andina

produção les ballets C de la B (Gent)

co-produtores Théâtre de la Ville (Paris), Grand Théâtre de Luxembourg, TorinoDanza, Ruhrtriennale 2008, KVS (Bruxelas)

com o apoio excepcional de Kunstencentrum Vooruit (Gent), Holland Festival (Amesterdão), NTGent

estreia [2Set2008] Ruhrtriennale 2008 (Bochum, Alemanha)

duração aproximada [2:00]

classificação etária Maiores de 12 anos

“Pois, mas Jesus não teria feito isso assim”

Alain Platel sobre pitié!*

Paixão

A essência da história de Cristo, quer tenha acontecido ou não, quer acreditemos nela ou não, é a mesma que podemos encontrar em muitas outras histórias. “Ama o teu semelhante.” É isto que interessa. É tão simples que precisamos de uma vida inteira para o compreender. Ama os outros como a ti próprio. Isto é mais a essência de uma moralidade do que de uma religião. E em particular na história da Paixão de Cristo, na qual se baseia A Paixão Segundo São Mateus de Bach, aprendemos outro facto essencial da existência humana – que estamos aqui para morrer. Nas diversas versões cinematográficas a que assistimos com os bailarinos, repetem-se as mesmas opções, ou seja, mascaramos os factos ou mostramo-los em toda a sua crueldade? Mel Gibson ou Pasolini? A versão crua coaduna-se melhor com a minha percepção de que a vida é uma espantosa armadilha. É bela, torna-se interessante graças à cultura e àquilo que fazemos com ela, mas usufruímo-la apenas durante um muito breve período de tempo, e depois tudo acaba.

Na história da Paixão, a ênfase é dada ao sofrimento. Acredito que na experiência humana há mais sofrimento do que prazer. Deste ponto de vista, a relação com a mãe enquanto geradora de vida recupera a sua importância. Ainda que se faça um filho com boas intenções, cada nascimento é na realidade uma sentença de morte. A história de Jesus e Maria é uma boa metáfora para isto. Temos de entender o sofrimento como uma metáfora, já que esta mãe não se sacrifica pelo filho. Ela não carrega a cruz dele, limita-se a andar por ali como um pano molhado, a pingar lágrimas. Uma verdadeira mãe tomaria o lugar do filho.

Para Fabrizio, que está envolvido numa relação pai-filho, o assunto é talvez bastante complicado, tanto mais que o filho dele está nessa difícil fase da adolescência. Eu posso dizer estas coisas porque estou na confortável posição de não ter filhos. No entanto, devo acrescentar que não existe condenação, embora a imagem da mãe assassina reflicta as minhas convicções mais profundas. Ainda assim, a verdade é que eu tenho de facto alguma dificuldade em aceitar a ideia de “mortalidade”, mesmo quando a vida corre mal devido a uma doença ou a um acidente.

Em pitié! temos três figuras centrais: a mãe, o filho e a namorada/irmã. A mãe é muito estática, ao passo que as outras figuras dão mostras de alguma rebeldia. A figura de Jesus é especial. O contratenor Serge Kakudji é profundamente religioso. É extraordinário o modo como ele se cruzou no nosso caminho, o modo como nos surgiu de repente, saído da selva de Kinshasa. O facto de ser este rapaz a desempenhar o papel é muito excitante e levanta uma série de questões. Embora ele seja um verdadeiro crente, nunca procurou exprimir a sua “opinião” sobre aquilo que acontece à volta dele ou com ele. O Serge não tem dificuldade em aceitar ou em interpretar tudo o que acontece no espectáculo. Nós, por outro lado, só conseguimos chegar lá por meio da ironia ou do cinismo. Estamos em território não familiar, como acontece com o bailarino Quan, que vem do Vietname comunista e não tem qualquer afinidade com o que quer que seja de “religioso”. Os nossos preconceitos levam-nos a resistir à religião “barata”. O Serge não tem absolutamente nada disto. Não contesta nada do que acontece à sua volta durante o espectáculo. Nunca entra em discussões, nunca se põe a dizer coisas do género: “Pois, mas Jesus não teria feito isso assim”. É uma presença muito importante, já que funciona como uma ponte entre diferentes mundos. Confere ao espectáculo uma outra dimensão que não existiria sem ele: a possibilidade de levarmos a sério esta história.

Do avesso

Em pitié!, de um modo muito intuitivo, optei por uma imagem de homens a defecar nas bermas de uma estrada, tirada de uma velha fotografia que a minha mulher, Isnel, me enviou de França. Diversos teatros mostraram alguma relutância em publicar a foto, o que me forçou a explicar a minha intuição. Esvaziar os intestinos é geralmente uma actividade muito privada e íntima. A meu ver, o sentimento religioso é igualmente um assunto muito privado. À partilha desta extrema intimidade chama-se comunhão. Assim, na minha perspectiva, a fotografia dos homens a defecar reflecte uma espécie de comunhão.

Tenho sempre receio de que, neste tipo de discussões tolas, acabemos por defender posições intolerantes. Ainda assim, estou convencido de que sempre abordei essas coisas nas minhas produções. Não se trata de uma qualquer mudança que tenha ocorrido nestes últimos anos. No passado, fi-lo situando as pessoas nos seus contextos sociais e políticos e criando personagens que facilmente poderiam ter sido “escolhidos ao acaso na rua”. Agora faço-o virando as pessoas do avesso. Abordar estas questões existenciais é algo de tão político como gritar slogans em Iets op Bach [1998]. Ainda não decidi se a imagem da foto surgirá de um modo assim tão nu na coreografia. No espectáculo ocorre ao mesmo tempo que é ministrada a Sagrada Comunhão, durante a missa: Cristo abraça a sua cruz (“O süsses Kreuz”) e renuncia ao corpo. Antes disso, vimos já muita pele e muita carne durante o espectáculo, mas sempre apresentada com recato. Sempre acreditei que, ao evitar a nudez, estamos a reforçar o sentimento que tentamos transmitir. Mas, desta vez, talvez abra uma excepção para esse momento particular. A pele e a carne revelam essa incrível necessidade de sentir “o outro”. Faz parte do lado passional da vida, da sexualidade e da reprodução. O encontro de pele com pele, de carne com carne, gera crianças. A mãe refere-se ao filho como “carne da minha carne”. Creio que tudo gira à volta disto.

* Excertos de “Talking to Alain Platel about pitié!”, entrevista conduzida por Hildegard De Vuyst em Agosto de 2008. www.fransbrood.com (2009).

Trad. Rui Pires Cabral.

“Ou seja, estaríamos a tocar Bach, mas…”

Fabrizio Cassol sobre pitié!*

Triângulo

Quando abordamos A Paixão Segundo São Mateus, uma das primeiras questões que colocamos a nós próprios é se devemos ou não usar a narrativa. Neste caso, tornou-se imediatamente claro que o Alain estava interessado em preservar de algum modo a história. A questão seguinte é decidir o que fazer com Cristo. E quem deverá desempenhar esse papel. Surgiu-me uma possibilidade quando Jan Goossens, o director artístico do KVS, e a soprano Laura Claycomb me apresentaram Serge Kakudji em Kinshasa. Eles tinham conhecido o Serge através de Dinozord, uma produção do coreógrafo congolês Faustin Linyekula. Na altura ele tinha 17 anos e era autodidacta. A Laura apercebeu-se do potencial dele e procurou confirmá-lo de diversas maneiras. Foi também através dela que o Serge iniciou a sua formação na Bélgica. Tive de lhe prometer solenemente que não escreveria uma única nota a mais, de modo a não comprometer o seu desenvolvimento enquanto cantor. O Serge oscilava entre a sua cultura africana e a cultura ocidental da qual se apropriara. Foi precisamente este estado intermédio que atraiu o interesse de Alain. Para lhe tornar mais fácil o papel de “Cristo”, dupliquei-o. Ao fazê-lo, usei uma certa visão esotérica que defende que Cristo tem duas almas: uma masculina e outra feminina. Em oposição a Cristo, criei uma figura materna. Não sei ao certo de onde veio isto. A figura da mãe não está presente na Paixão de Bach. Este triângulo teve dois pontos de partida. Um deles foi bastante fortuito. Durante a nossa digressão com vsprs [2006], assisti por acaso, num quarto de hotel, a um filme que não tinha qualquer intenção de ver: A Paixão de Cristo, de Mel Gibson. Na cena da crucificação, Maria e Madalena são figuras dominantes. Creio que esse aspecto me ficou na memória. O outro ponto de partida foi o triângulo de vsprs constituído pela soprano e pelos dois bailarinos na ária “Nigra Sum”. Sempre entendi este triângulo como uma mãe e dois filhos, almas gémeas. Assim, parti da ideia de criar um esquema com três figuras, obviamente em diálogo com o Alain. As almas gémeas evoluíram gradualmente para um “Jesus” e uma “Maria Madalena”, mas estas figuras não se excluem mutuamente; também no amor somos abençoados quando encontramos uma alma gémea.

“Erbarme dich”

Falando em termos gerais, há três formas de abordar a música de Bach. Podemos criar uma nova versão barroca dessa música. É o que faz alguém como Nikolaus Harnoncourt, mas, para mim, essa hipótese estava fora de questão. Outro caminho é enfatizar o aspecto “racional” da música e ampliar essa linha cerebral, trazendo-a até à música contemporânea. Ou então podemos acrescentar-lhe qualquer coisa: uma série de instrumentos africanos, por exemplo. Porém, o Alain e eu estávamos interessados em fazer algo de diferente. Queríamos criar um contexto musical contemporâneo no qual pudéssemos introduzir a música de Bach, assim como a palavra de Cristo chegou outrora a contextos que lhe eram estranhos e nos quais soava como algo de “novo”. Comecei por adaptar a ária “Erbarme dich”, que representa na perfeição o mistério da Paixão. Além disso, o Alain já a tinha utilizado no final de Iets op Bach. Eu sabia que, se conseguisse um resultado satisfatório com “Erbarme dich”, o resto funcionaria igualmente bem. É certo que mudei algumas melodias, mas não podia fazer o mesmo no caso de “Erbarme dich”. Parti de uma ideia básica: tinham de ser três vozes, e cada um dos três papéis tinha de apelar à piedade. Paralelamente a isto, criei um contexto africano com influências do Mali e de outras tradições musicais que tiveram um papel decisivo no meu modo de fazer música. Quando falo de “outro contexto”, estou a referir-me sobretudo a um contexto cultural diferente do meio cristão protestante que produziu um Bach. Ao invés de partir de Bach, quis que ele fosse o nosso ponto de chegada. Que a música dele surgisse a determinada altura, e que isto acontecesse no final. Ou seja, estaríamos a tocar Bach, mas com um arranjo que nos permitisse transpor a polifonia original para os nossos sete instrumentos melódicos. As escolhas de certos excertos da Paixão foram baseadas nas palavras. Mantendo em mente os três papéis, procurámos uma forma de contar a história por meio deles. Comecei por trabalhar com os textos sem me ater demasiado a quem diz o quê no libreto original. Mas também sem definir com precisão quais as palavras que podiam ser ditas por cada uma das personagens; queria evitar torná-las demasiado rígidas. Com isto cheguei a 14 cenas capazes de sustentarem a narrativa sem deixarem de ser suficientemente poéticas e livres. Dessas 14 cenas, apenas uma não foi utilizada – nomeadamente, a da Última Ceia, um perfeito exemplo de anti-dança. Contudo, a Última Ceia é representada de outras formas ao longo do espectáculo: por meio da mesa, ou sob a forma das últimas palavras dos condenados à morte, que os bailarinos sussurram ao microfone. Quanto a mim, a chave de toda a adaptação foi interligar o trabalho de Alain e a música de Bach.

* Excertos de “Talking to Fabrizio Cassol about pitié!”, entrevista conduzida por Hildegard De Vuyst em Agosto de 2008. www.fransbrood.com (2009).

Trad. Rui Pires Cabral.

“Existe sexo nas vozes, dizia eu”

Jean-Marc Adolphe*

[…] Depois de Wolf [2004] e de vsprs [2006], e apesar da notoriedade que lhe é hoje reconhecida, pitié! não é nem “um murro nos olhos” nem tão-pouco “um murro nos ouvidos”. Muito pelo contrário. Duas horas depois de se terem erguido os corpos e os sons deste espectáculo simultaneamente majestoso e precário, saímos dele extraordinariamente apaziguados, serenados e, por assim dizer, desarmados. O seu fio condutor é, contudo, uma Paixão, e não das menos importantes: A Paixão Segundo São Mateus de Bach, que o reverendo Fabrizio Cassol reorquestrou da maneira mais delicada possível, e na qual introduziu, como mestre cirurgião, as suas próprias composições misturadas com especiarias jazzísticas, ciganas, latinas. Esta receita de circunstância traz inclusive à música de Bach uma cor, uma vivacidade e até uma sensualidade inesperadas, a milhas da beatice empolada com que certos maestros sobre-interpretam uma religiosidade que apenas tem sentido se for infundida, circunspecta e recolhida. E, em pitié!, os cantores estão no maravilhoso diapasão de uma corporalização que ignora as hipocrisias. Sobretudo o contratenor, Serge Kakudji, um novíssimo artista congolês (tem apenas 19 anos) cujo timbre é de um refinamento límpido. Uma voz dotada de corpo: vê-lo-emos mesmo iniciar um solo dançado, de um erotismo perturbante. Porque, nesta Paixão Segundo São Mateus interpretada por Alain Platel e Fabrizio Cassol, existe sexo nas vozes. E essa “encarnação”, se assim lhe podemos chamar, dá o tom de toda a linha emocional, e dramatúrgica, que guia a coreografia de Alain Platel.

“I love you”. Esta mensagem, murmurada e amplificada desde o primeiro dueto de pitié!, põe os corpos em tensão, isolada e colectivamente. Todo o espectáculo é um fresco de corpos procurando a(s) sua(s) voz(es). Vozes interiores subindo à superfície, vozes exteriores provindo de um desejo de encontro e de alteridade, voz silenciosa de um misterioso chamamento (como provavelmente o puderam sentir certos místicos de outrora). E de um modo completamente lógico, no fim do espectáculo, todas essas vozes misturadas se fundem no seu começo, na escansão rítmica do sopro respiratório que se torna coro comum, orgânico (e isso, na verdade, constitui uma estranha liturgia). Um dia, Alain Platel criará a sua Sagração da Primavera. Enquanto isso não acontece, ele ganha balanço, cria o seu Platel. Mas sem se repetir demasiado. Da experiência de Wolf, manteve um cão, que o segue por todo o lado. Em Wolf, o cão tinha qualquer coisa de lobo. Posteriormente, a sua selvajaria acalmou. Platel também, sem dúvida menos impetuoso do que no tempo de Bonjour Madame…, o espectáculo que lhe trouxe a consagração nos palcos europeus (em 1993). O que não quer dizer que tenha desaparecido a sua obstinação em contestar as fealdades e injustiças do mundo.

[…] Recusando a exibição dos virtuosismos singulares (embora deles restem, felizmente, fragmentos cintilantes), Alain Platel privilegia aqui a força do grupo, que se exprime quer através de formidáveis uníssonos, quer no sentimento de coesão que anima todos os habitantes deste espectáculo, sejam eles bailarinos, músicos ou cantores. Mas o que tem então a piedade a ver com isto tudo? Ao contrário do que poderíamos esperar, não existe qualquer tipo de compaixão na arte de Platel, a não ser que admitíssemos, baseados numa etimologia algo ousada, que “compaixão” significaria: paixão partilhada por várias pessoas. Nesse caso, se esta Paixão pode conter algum sofrimento, desejando portanto uma certa necessidade de piedade, é porque o amor a que aspira é incomensurável. Seja: pitié!. Mas o opus de Alain Platel e Fabrizio Cassol poderia também ter-se intitulado, simplesmente, Love!. Pois, no fundo, é apenas disso que se trata, das múltiplas vozes do amor, quer se trate de fraternidade, quer, mais trivialmente, de animalidade “coital”. Existe sexo nas vozes, dizia eu. Paradoxo aparente, então, da infinita doçura que banha, num recolhimento consentido, os corpos de pitié!, e de uma sensualidade à flor da pele que vem arquejar nos seus espasmos.

* Excertos de “Entre sensualité et recueillement”. www.theatredelaville.fr (2009).

Trad. Manuel de Freitas.

Maiorca

direcção e coreografia Paulo Ribeiro

música 24 Prelúdios, de F. Chopin

interpretada por Pedro Burmester

figurinos Ana Luena

desenho de luz Nuno Meira

cenografia Paulo Matos, Nelson Almeida

interpretação Erika Guastamacchia, Marta Cerqueira, São Castro, Gonçalo Lobato, Pedro Mendes, Romulus Neagu

produção Companhia Paulo Ribeiro (Viseu)

co-produtores Centro Cultural Olga Cadaval (Festival de Sintra), São Luiz Teatro Municipal (Lisboa), Teatro Viriato (Viseu), TNSJ (Porto)

estreia [19Jun2009] Centro Cultural Olga Cadaval (Festival de Sintra)

duração aproximada [1:20]

classificação etária Maiores de 12 anos

A intuição do outro

Claudia Galhós

“A noção de acontecimento, quando se trata do corpo, é ambivalente, ou ainda ambígua, porque, se o corpo é um suporte e um objecto de acontecimentos (acontecimento ele próprio, de certo modo), pode também suscitar acontecimentos: desloca-se, copula, ataca, defende-se. Mas estes comportamentos do corpo são as mais das vezes enquadrados por regras estritas (regras de residência, de aliança matrimonial, de guerra) por referência às quais são apreciados e interpretados – objectos, portanto, uma vez mais, de procedimentos de interpretação.”1

Por esta vez o corpo silencia-se. Faz-se mais próximo do enredo de ambiguidades que as acções dos bailarinos suscitam. Ficaram para trás as palavras de Fernando Pessoa, que persistem no desassossego e no estremecimento das silhuetas dos intérpretes. Mas Pessoa sempre andou por ali, mesmo antes de Masculine (2007) e Feminine (2008), ambas inspiradas na escrita e na vida desse “turista infinito”, como lhe chama o coreógrafo.

Paulo Ribeiro andou sempre por esses caminhos de raiz humana, calejados a pedra ou despojos do quotidiano. Com o tempo, foi-se tornando mais urbano e menos rural, criando “episódios da imaginação”2 que levemente tocam a realidade. A inspiração fez-se à estrada, calcorreou campos e ruas portuguesas. Aproximou-se das gentes, mas nunca, ao contrário do temperamento do poeta, ao coreógrafo lhe entristeceu o dizer. Antes foi transformando as angústias e as impressões dos dias de chuva em abrigos de riso e de ironia. O país foi-se desenhando colorido. E, no correr dos anos e das suas obras, foi-se abrindo ao mundo. Ao mundo, afinal, ao qual esteve sempre intimamente ligado.

A vida ainda é íntima. Joga-se em solos, duetos, trios. O tema é recorrente. A relação entre as pessoas, atravessada pela relação entre sexos. A poesia amorosa dos gestos. O desejo. As fragmentações que as acções propõem ao olhar, atravessadas por elementos cénicos ou por outros corpos. As dinâmicas de encontro, simultaneidade ou dissonância, entre o colectivo e o indivíduo. Tudo isto sempre lá esteve, de formas diversas, assim como essa estrutura de músculos e nervos de impulsos entrecortados do tronco, braços e pernas, que ainda hoje traduz esse corpo de cordas de Paulo Ribeiro e que, pontualmente, vai atravessando a peça.

Mas agora o pretexto é outro. Esse mundo ainda reconhecível desvia-se para outros caminhos, tropeça em novos obstáculos, e encena o recorrente questionamento das relações humanas a partir de materiais distintos. Agora, diz ele, precisa de histórias. Histórias paralelas, de pessoas que existiram, de palavras ou sons pronunciados antes dele, para se lançar no primeiro movimento criador. Já não começa perdido entre todas as possibilidades, à procura que naturalmente irrompa o gesto inaugural. Desde Fernando Pessoa, muito recentemente, começa por um artista. No poeta, era o andamento das palavras e os passos errantes do homem. Desta vez, partiu ao som dos 24 Prelúdios de Chopin e desse Inverno tenebroso que o músico passou, doente e desamparado, em 1838, em Maiorca, com George Sand. Período convulso que enquadra a composição dos Prelúdios. Maiorca surge assim como título, ou como ilha para onde convergem fragmentos de leituras, imagens, filmes, ideias, criações dos intérpretes que acabaram por ecoar como múltiplas vozes que habitam a nova peça.

Desde logo, a exposição do conflito com o romantismo, que o coreógrafo vê como “algo falsamente harmonioso”, que está simbolizada pelo contraste do seu discurso coreográfico com a música, que desvela uma interioridade mais visceral, pulsante e carnal que o ambiente sonoro não deixaria adivinhar. Mas por trás dessas notas musicais, escondia-se o sofrimento com que Chopin, o homem, se debatia e toda uma história de vida carregada de contornos dolorosamente, ou deleitosamente, humanos. É disto que se faz a partitura de corpos de Maiorca. Não é certamente um Paulo Ribeiro romântico. É ainda a lembrança do desafio que Jorge Salavisa lhe fez há muitos anos, quando o segundo era director do Ballet Gulbenkian, e lhe sugeriu que gostava de ver como poderiam encontrar-se estas duas linguagens tão distintas: o lirismo de Chopin e a convulsão perturbadora e fragmentada dos corpos do coreógrafo.

Ainda assim, Maiorca é um regresso ao prazer do movimento, mas não nessa tradução contagiante da dança pura que se liga à música como chegou a ser Ao Vivo (criado em 1999, com os músicos Mário Laginha e Maria João). Não há aqui uma tradução das ondulações sonoras para a coreografia. Há uma peça feita de desacertos. E de breves composições musicais que alteram de forma radical a sua paisagem sonora na passagem de uma para a outra. Os prelúdios mantêm a sua ordem, mas com a alteração de que alguns se repetem.

Num primeiro momento, poderíamos dizer que Maiorca nasce de uma experiência de naufrágio. Por isso o palco está vazio, mas no chão espalham-se fragmentos de madeira. Vistos assim, não são mais do que bocados de nada. De algo que já foi alguma coisa e que se encontra desfeito. É a primeira vez que Paulo Ribeiro trabalha com uma tal estrutura cénica. Um puzzle de peças isoladas que se montam e combinam e recombinam para construir diferentes estruturas arquitectónicas em cena. O espaço deixa de estar aberto, como aconteceu até aqui. Apenas invadido por acessórios ou adereços que os intérpretes para lá transportavam ou pela existência de vídeo. Agora há paredes, portas, bancos, camas, objectos de prazer, objectos de repouso. O quotidiano ergue-se em pedaços em cena. Impõe-se. Oprime, cria obstáculos, esconde, esmaga... Tati é convocado. Podia estar ali como está no filme Mon Oncle. Mas resta apenas um traço. E nesse traço resta essa ideia de alguém, numa sala, à procura de encontrar uma certa eficácia em relação a um determinado contexto. Ou seja, no filme, Tati está numa sala de design. Tenta encontrar uma forma de como esperar, de como se sentar... Em palco, Paulo trabalhou no sentido da repetição de uma série de movimentos estranhos no contexto, mas específicos a cada um dos intérpretes, e cuja persistência no mesmo acaba por construir um sentido que não existia originalmente.

Este edifício que se destrói e se constrói em cena é um corpo, tanto como a multiplicidade de corpos dos intérpretes são matéria desse mesmo edifício. A relação com os outros é uma relação física, que passa pela pele, pelo toque, pela manipulação, por se dar como objecto. Chopin, Maiorca, Tati, o romantismo, a dualidade da vida pública e da vida privada, ou a pornografia... são tudo elementos de uma mesma matéria, um estilhaçar de acontecimentos que se sucedem, que têm no corpo o suporte de construção de sentidos, orientado por uma multiplicidade dispersa de procedimentos de interpretação, que o baralham e lhe comandam a acção. A superfície da imagem que o coreógrafo cria, nessa dualidade de corpo e objecto, de constante representação da contradição, é um jogo de espelhos que não chega para fazer arrancar da obscuridade uma mais profunda intuição do outro, que é assim hoje como era no século XIX, nos tempos do músico. Na ambivalência do ser, permanece em desassossego Fernando Pessoa. “Não possuímos nem o corpo nem uma verdade – nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, sombras de ilusões, e a nossa vida é oca por fora e por dentro.”3 Ainda assim, atravessados pelo olhar de Paulo Ribeiro, soltamos um riso largo ao aperto mais amargo. E na negação constante da lógica, desenha-se uma ilha habitada por um povo inquieto de músculos, sangue e nervos.

  Marc Augé, Para que Vivemos?, 90 Graus Editora, Lisboa, 2006, p. 59.

2 Expressão utilizada por Bernardo Soares.

3 Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Assírio & Alvim, 2001, p. 330.

Orphée et Eurydice

direcção e coreografia Marie Chouinard

música original Louis Dufort

adereços, desenho de luz e cenografia Marie Chouinard

figurinos Vandal

caracterização Jacques-Lee Pelletier

texto excertos de Profanações, de Giorgio Agamben

interpretação Dany Desjardins, Mark Eden-Towle, Ève Garnier, Geneviève Gauvreau, Carla Maruca, Lucie Mongrain, Carol Prieur, Manuel Roque, Dorotea Saykaly, James Viveiros, Won Myeong Won

produção Compagnie Marie Chouinard (Montreal)

co-produtores Canada Dance Festival (Otava), Carolina Performing Arts (Chapel Hill), Festival TransAmériques (Montreal), Fondazione Musica per Roma, Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), Movimentos Festwochender Autostadt (Wolfsburgo), National Arts Centre (Otava), Place des Arts (Montreal), Théâtre de la Ville (Paris)

estreia [6Fev2008] Auditorium Parco della Musica (Festival Musica per Roma)

duração aproximada [1:05]

classificação etária Maiores de 12 anos

Um mito sobre o acto de criação

Michèle Febvre*

Corpos impulsionados por forças subterrâneas que os atravessam de um lado ao outro. Um universo desenfreado, que o grotesco vem disputar a Eros. Orphée et Eurydice é uma obra poderosa, excessiva, habitada por vagas de humor. Fascinada pelo corpo até nas suas manifestações mais íntimas e secretas, a coreógrafa Marie Chouinard concebeu uma “dança exploratória” que ousa o desregramento do corpo, a desmesura, executada por intérpretes que nisso se empenham totalmente. Esta dança demoníaca expõe as origens viscerais da criação. Sopros, gritos, vogais, consoantes desenraízam-se do orgânico como uma infra-língua extraída do âmago do corpo. Não é um mito sobre o amor. Não se procure aqui uma só Eurídice, um só Orfeu; eles são múltiplos, no número e no género. Entre a harmonia e o dilaceramento, o divertimento e a crueldade, as forças pulsionais do que vive excitam corpos possuídos.

* “Un mythe sur l’acte de créer”. www.mariechouinard.com. (Texto originalmente publicado no programa de sala do Festival TransAmériques, Montreal, Canadá, 2009.)

Trad. Manuel de Freitas.

Welcome to HELL!

Tiago Bartolomeu Costa

Não será certamente por capricho que o universo de Marie Chouinard não se consegue definir de forma clara. A linguagem da coreógrafa canadiana combina com destreza e elegância, mas também com uma distância analítica quase incomodativa, a tautologia da dança europeia com a tradução literal em imagens visualmente ambiciosas caras a um discurso norte-americano.

Ao contrário de outros nomes da dança canadiana, como o iconoclasta Benoît Lachambre e o conformista Édouard Lock, director artístico da La La La Human Steps – opostos extremos de um possível mapa reconhecível da dança canadiana, ao qual teríamos agora de acrescentar Dave St Pierre e os seus mergulhos em apneia na sexualidade e no corpo pornográfico –, Marie Chouinard soube sempre construir um imaginário onde as referências são pontos de partida para demais leituras em vez de momentos de contemplação dramatúrgica.

Exemplos recentes que passaram em Portugal, como Body Remix/Les Variations Goldberg (Centro Cultural de Belém, Lisboa, 2006) e Sacre, a partir de Le Sacre du Printemps (que o Ballet Gulbenkian apresentou no TNSJ em 2004), clarificam a recusa de uma leitura imediata da narrativa enquanto motor de desenvolvimento da acção.

Chouinard explora o corpo como se este fosse, ele próprio, a narrativa. E encontra nele (na multiplicidade dos seus intérpretes) lógicas narrativas independentes que depois se entretém a ligar de forma aparentemente aleatória. O ponto que os une, se pode ser, como é aqui o caso, uma estrutura narrativa clássica, ganha, através de um trabalho feito a partir dos contornos, uma outra dimensão, mais autoral, menos presa à ficção matricial, mais atenta às margens de risco. A linguagem discursiva de Chouinard é generosa na ampliação dos detalhes, e é também obsessiva na disposição dos corpos na sua relação com o espaço. Estes existem enquanto elemento de passagem, enquanto mensageiros, se quisermos, e nunca enquanto elementos finitos e ao serviço de uma ideia (ou uma narrativa).

É a partir dessa deslocação dramatúrgica e conceptual que Marie Chouinard desenha novos centros fictícios, onde procura explorar o que de menos evidente eles têm, o que de mais invisível eles escondem, e o que de forma menos explícita atraem.

É também esse o caso de Orphée et Eurydice, peça sintomática de um discurso mais aberto ao conteúdo que à forma, mais entretido com o jogo cénico que com a lisura do movimento, mais preocupado com a descoberta do que com a retórica da urgência. A famosa trama não é senão um pretexto e a partitura de Gluck é apenas a base – uma ou apenas mais uma – de uma construção coreográfica em aberto.

A coreógrafa faz desfilar pelo palco aberto e intensamente iluminado um conjunto de bizarrias e amoralidades sob a forma de corpos despudoradamente nus, celebratoriamente livres e crentes na capacidade de se olhar(em) para além do impacto efémero da imagem. A pretensa radicalidade de Orphée et Eurydice não assenta nem na nudez dos intérpretes, nem no grotesco do movimento nem na dispersão cénica e coreográfica. Para mais, a peça é muito menos radical do que se pode pensar, inclusivamente depois de terminar, abrupta e surpreendentemente.

Se é verdade que Chouinard parece usar o mito de Orfeu para criar a sua própria narrativa, não é menos verdade que ela parte exclusivamente do que esse mesmo mito lhe oferece e, curiosamente, tem sido deixado de parte, dada a dimensão moral (ou moralizante ou moralista) da estrutura dramatúrgica.

Mais do que sensual, esta é uma peça que explora despudoradamente o teor sexual do mito, devolvendo-lhe a carne que o romantismo efabulou. Chouinard faz-nos descer até ao centro da perversão, arrisca partir do interdito em vez de ambicionar chegar até ele, e separa os dois amantes não porque o amor entre eles falhe por quebra de promessa aos deuses, mas porque, a bem da verdade, o verdadeiro gozo está no pecado.

Exibicionista e provocadora, a peça está, natural e conscientemente, longe da elegância e beleza ímpares da versão de Pina Bausch, de 1975, exemplo claríssimo da relação intrínseca entre o movimento coreografado e visível nos corpos e a coreografia de imagens sugeridas pela partitura de Gluck. Mas enquanto a coreógrafa alemã optava por uma celebração mais cerebral na sua composição sequencial, mais generosa na dramaturgia, mais operática no sentido trágico do termo, mas mais esgotante na profusão de imagens angustiantes, Chouinard não recusa o lirismo, nem mesmo a metaforização coreográfica, preferindo desfiar intrincados nós de uma narrativa evidente e fitada num único ponto: um j’accuse hoje em dia por demais retórico. Ao libertar a dramaturgia do seu clímax – a moral –, deita também por terra a noção de culpa. E enquanto Bausch criava, através da sua linguagem expressionista, imagens para uma ópera, arriscando uma tradução visual por vezes demasiado estanque, Marie Chouinard rasga literalmente a cena e arrasta o espectador para o centro da acção, tornando-o cúmplice do gesto – agora já nada profano nem desobediente aos deuses de Orfeu.

O maior gesto profano desta peça é o revelar da sua dimensão lúdica, patente tanto no inventivo jogo cénico (profusamente acompanhado por adereços que de tão hipersimbólicos ganham uma dimensão surreal credível) como na nova linha dramatúrgica que propõe. A coreógrafa, ao insistir na humanização do gesto de Orfeu, abre as portas de um novo-território-novo onde só cabem os que têm dúvidas, como Orfeu. A exposição do imenso gozo ao qual Orfeu pode ambicionar, baralhando assim as regras da narratividade, destrói qualquer hipótese de moralização.

É esta opção pelo momento da dúvida, pelo momento, que dura mais do que devia, em que Orfeu olha para trás e tudo perde – esse prazer imenso que ele reconhece nos corpos soltos dos outros –, que Marie Chouinard explora em toda a peça. Ela estende esse olhar, imediatamente de arrependimento, por toda a duração do espectáculo e tenta-nos – como Orfeu se sentiu tentado. A radicalidade do gesto está, portanto, na denúncia do prazer que Orfeu retira quando, ao olhar para trás, percebe o que nunca teve. E nós, fiéis depositários do valor da obra, com ele.

Esta liberdade narrativa, e esta inventividade coreográfica estão, então, na base de um olhar particular sobre o poder da sugestão, opção muito mais poderosa que a exposição característica, ainda que por vias diferentes, de um e do outro lado da dança contemporânea atlântica. Por isso, as composições de Marie Chouinard, se difíceis de definir na sua dimensão estritamente coreográfica, propõem uma outra concepção do corpo, mais próxima da falha, do risco e do erro. E isso é de uma liberdade invejável!


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