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Agenda do Porto
19 novembre 2009

Breve Sumário da História de Deus

de Gil Vicente

encenação Nuno Carinhas


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Nuno Carinhas elegeu para primeira encenação, enquanto director artístico do Teatro Nacional São João, um texto pouco procurado por leitores e encenadores: Breve Sumário da História de Deus, um auto marcadamente religioso de Gil Vicente. O regresso a este dramaturgo acontece dois anos após a montagem de Beiras, um tríptico constituído por A Farsa do Juiz da Beira, A Farsa de Inês Pereira e Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela.

 

Estreado na corte de D. João III, Breve Sumário da História de Deus percorre, cruzando a exaltação lírica e o impulso satírico, os caminhos das Sagradas Escrituras – da Queda do Homem à Ressurreição de Cristo. “Para além de tratar da condição humana, que será porventura o que mais importa, o Breve Sumário tem várias particularidades interessantes, nomeadamente ao nível da sua construção: faz-se de uma sucessão de apresentadores, de uma sucessão de cenas; (…) Primeiro, entra o Anjo, que saúda a corte e introduz a história, apresentando as primeiras personagens. A partir desse momento, o auto é entregue aos demónios, o que é um traço profundamente vicentino, com resquícios do teatro medieval, e acedemos a uma conversa de carácter filosófico e teológico. Dado que o Vicente começa pelo pecado original, somos logo lançados numa espécie de rede maniqueísta, mas as tessituras que há no auto permitem-lhe, de facto, falar da universalidade da condição humana”, explica Nuno Carinhas.

 

Paralelamente à apresentação de Breve Sumário da História de Deus, Nuno Carinhas programou uma série de actividades complementares: a exposição Vicente, da autoria de Ilda David, que inaugura no dia 20 de Novembro pelas 18h30; um ciclo de conferências intitulado O que resta de Deus, comissariado por Pedro Sobrado (26+ 27 de Novembro e 3, 4 e 5 de Dezembro); e a leitura integral do texto Paraíso Perdido, de John Milton, com direcção de Nuno Carinhas e Daniel Jonas. A sessão está marcada para o dia 14 de Dezembro, entre as 20h e a 01h.

 

Ao longo deste mês de representações, o TNSJ promove duas actividades de cariz formativo: uma oficina de técnica Vocal, orientada por João Henriques (21-22 Novembro) e uma Martesclass (25 Novembro) sobre a Construção e Dramaturgia de Breve Sumário, por Nuno Carinhas.

 

Salientamos ainda que o espectáculo Breve Sumário de História de Deus vai estar no palco do Teatro D. Maria II, de 8 a 31 de Janeiro, na mesma altura em que o Teatro Nacional São João recebe a actriz Eunice Muñoz, com a peça O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion, encenação de Diogo Infante.

Breve Sumário da História de Deus

de Gil Vicente

encenação e cenografia Nuno Carinhas

figurinos Bernardo Monteiro

desenho de luz Nuno Meira

desenho de som Francisco Leal

voz e elocução João Henriques

apoio dramatúrgico Pedro Sobrado

apoio linguístico João Veloso

interpretação

Alberto Magassela Moisés

Alexandra Gabriel Morte

António Durães Lúcifer

Daniel Pinto Cristo

Joana Carvalho Anjo

João Cardoso Adão

João Castro Tempo

João Pedro Vaz São João

Jorge Mota Abraão

José Eduardo Silva David

Lígia Roque Eva

Mário Santos Isaías

Miguel Loureiro Job

Paulo Calatré Belial

Paulo Freixinho Satanás

Pedro Almendra Mundo

Pedro Frias Abel

assistência de encenação João Castro

O espectáculo integra os seguintes poemas:

Salmo 139, mudado para português por Herberto Helder (In Poesia Toda. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996);

“Palavras de jacob depois do sonho”, de Ruy Belo (In Todos os Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000);

“Reconciliação”, de Else Lasker-Schüler (In Baladas Hebraicas. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002).

A banda sonora inclui temas tratados a partir dos originais:

“Guai ai Gelidi Mostri”, de Luigi Nono, interpretação Ensemble Recherche (In Luigi Nono 3: Guai Ai Gelidi Mostri / Omaggio A György Kurtág. Montaigne, 1995);

“Terceiro Tento Do Quarto Tom Natural”, de Manuel Rodrigues Coelho, interpretação A Corte Musical (In Flores de Lisboa. K617, 2007);

“Gates of Fire”, de Stephan Micus (In The Garden of Mirrors. ECM Records, 1997);

“O Virtus Sapientie”, de Hildegard von Bingen, interpretação Kronos Quartet (In Early Music: Lachryma Antiqua. Nonesuch Records, 1997);

“Omeyocan, Lugar 2”, de Jorge Reyes (In El Costumbre. Cargo Records, 1993);

“Wanna Mako” e “Attainable Border: South”, de Hector Zazou & Swara (In The House of Mirrors. Crammed Discs, 2008).

produção TNSJ

estreia [20Nov09] TNSJ (Porto)

duração aproximada [1:20]

classificação etária Maiores de 12 anos

Teatro Nacional São João

[20 Novembro | 20 Dezembro 2009]

terça-feira a sábado 21:30 domingo 16:00

Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa)

[8 | 31 de Janeiro 2010]

quarta-feira a sábado 21:30 domingo 16:00

O arco em que tudo acontece

D. Manuel Clemente*

Um breve sumário da história de Deus levado à cena no Teatro Nacional São João do Porto, quase a findar 2009…

Um momento também, para nos surpreendermos com o enunciado. De facto, é muito desproporcional. Da palavra imensa que é “Deus”, com tudo o que evoca e ainda mais o que adivinha, à limitação de semanas, em espaço definido. Espaço cenograficamente “concentrado” e em penumbra na maior parte do tempo breve, até irromper o tempo todo, abrindo-se a luz e finalmente a porta.

Valha-nos o facto do espaço nos integrar a nós, actores ou espectadores, com a natureza de novo imensa de cada um. Encontramos então o arco em que tudo acontece, de imenso a imenso, através das mediações do espaço e do tempo. Aqui, agora, num teatro do Porto.

Quase só o génio de Gil Vicente nos podia situar assim, tão desmedidamente afinal. Conhecemo-lo: de auto em auto, lá desfilam todos e a tratar de tudo. Figuras celestes, as mais sublimes, e retratos terrestres, os mais comezinhos, dignos ou risíveis. Trechos de ritual, até nalgum latim da escrita, e apontamentos do linguajar corrente, como se não estranhava ainda nos serões da corte.

Já com razões modernas, de cristianismo reformista, em que Mestre Gil se dizia e comprometia; e conservando ainda a integralidade medieval de culto e cultura, em que tópicos bíblicos e lugares da altura se encontravam bem numa ambiência só, misturando figuras dos dois Testamentos com gente contemporânea do autor e acontecimentos de “actualidade”.

Mas a história era “de Deus” e brevemente sumariada. Como se fosse possível e como Gil Vicente acreditava ser. – Donde a ousadia? Vivo hoje, responderia apenas: – Creio assim! O seu cristianismo traz a religião para a história humana, como acontece. Não parte da eternidade para a história, reconhece na história o sinal que a alarga. E, precisamente, no que haja de mais circunstancial e episódico, também mais autêntico.

É por isso que nos faz rir ou chorar e nunca nos deixa indiferentes, meio milénio depois. É de nós que Gil Vicente trata, como se nos conhecesse já. Ou melhor, porque já nos conhecia, naquilo que transportava em si da humanidade comum. Por isso é um humanista de primeira e é primeiramente um humanista, situando-se naquela verdade que no sumário de cada ser humano se distende infindamente, como em Deus.

Deus faz-se história porque encarna, sabia-o Gil Vicente. E faz-se breve, sumaria-se, porque, vivendo inteiramente cada momento, aí mesmo realiza a sua integralidade. Sua e nossa, porque de relação se trata: criação, queda e recriação, de Adão a Cristo, tudo se re(con)duz, quando Adão somos nós. O resto da história também nos pode sumariar brevemente. Mas só quem o sabe o vive e só quem o vive o sabe e pode dizer escorreitamente, como Gil Vicente aqui.

Como Nuno Carinhas e os seus colaboradores e actores o retomam espectacularmente agora, sumariando-se também. Num trabalho de profunda e só assim belíssima coincidência com a escrita e a alma do mestre dos autos de el-rei.

Tudo fica breve, porque mais seria excesso. Tudo fica dito, porque basta para entrever. Da história de Deus, abrindo eternidade no tempo, só se pode falar como entrevisão. E assim é arte. Espantosa ocasião de nos espantarmos de nós. Entre figuras e sentenças, Gil Vicente reencontrou-nos. Na mesma história afinal.

Por alguns dias, num teatro do Porto, o breve sumário de tudo…

* Bispo do Porto.

Texto escrito na sequência do ensaio realizado no dia 30 de Outubro de 2009, no TNSJ.

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Sem abrigo

Entrevista com Nuno Carinhas. Por Alexandra Moreira da Silva*

Alexandra Moreira da Silva Começo com uma suspeita: parece-me que os textos vicentinos que mais te interpelam não são os mais conhecidos, nem aqueles que mais vezes vemos encenados. Digo isto, pensando no teu espectáculo Beiras [TNSJ, 2007], um tríptico que parte da Farsa de Inês Pereira, que é um texto conhecido, mas a que associas autos como a Farsa do Juiz da Beira e a Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela. Depois desta incursão por aquilo que me parece ser uma geografia humana mais restrita, uma geografia humana das Beiras, o Breve Sumário corresponde a uma abordagem da geografia humana universal?

Nuno Carinhas Beiras foi-me proposto por Ricardo Pais como um projecto sobre a exploração das linguagens regionais. Falta referir A Comédia Sobre a Divisa da Cidade de Coimbra, uma peça também pouco encenada, que eu fiz com a Escola da Noite há muitos anos [1993]. Foi, aliás, a minha primeira incursão no Vicente. Acho que o Breve Sumário da História de Deus andava a pairar há muito tempo, primeiro porque esta Casa, desde que o Ricardo Pais assumiu a Direcção, sempre quis desenvolver uma relação exploratória com a obra do Vicente; depois porque, desde que encenei O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de la Barca [TNSJ, 1996], ficou no ar a possibilidade de se recuar um pouco e montar uma das peças fundadoras de toda essa panóplia de outros textos, já barrocos, que se fizeram, nomeadamente em Espanha. Isso é interessante, porque constitui a prova de que o Vicente contaminou o teatro para lá da fronteira, aspecto que não é assumido de uma forma definitiva, talvez porque a sua obra não alcançou o eco que teve Calderón de la Barca ou Lope de Vega. Voltando ao auto: para além de tratar dessa condição humana, que será porventura o que mais importa, o Breve Sumário tem várias particularidades interessantes, nomeadamente ao nível da sua construção: faz-se de uma sucessão de apresentadores, de uma sucessão de cenas; é muito económico na forma como apresenta cada uma das personagens, e cada um dos episódios que escolhe mostrar. Primeiro, entra o Anjo, que saúda a corte e introduz a história, apresentando as primeiras personagens. A partir desse momento, o auto é entregue aos demónios, o que é um traço profundamente vicentino, com resquícios do teatro medieval, e acedemos a uma conversa de carácter filosófico e teológico. Dado que o Vicente começa pelo pecado original, somos logo lançados numa espécie de rede maniqueísta, mas as tessituras que há no auto permitem-lhe, de facto, falar da universalidade da condição humana. Para além disto, o Breve Sumário é um poema sobre um poema, se quisermos considerar o Antigo Testamento como um poema. É um poema mesmo no plano formal: tem picos inesperados; sendo irregular, tem coisas na escrita do verso que nos remetem para a frente, que apontam para um outro horizonte de tempo…

AMS Aproveito o facto de considerares o Breve Sumário como um poema sobre um poema para te questionar sobre a dramaturgia que propões, sobre a decisão de inserires três poemas contemporâneos no texto vicentino. Como é que surgem estes poemas, e qual é o sentido desta dramaturgia?

NC Achei que seria bom tentar uma contaminação. Eu sou muito fiel aos autores, e sou quase aborrecido nesse aspecto: não gosto de cortar as peças, de as modificar, embora seja reconhecível que fiz muitos espectáculos que não se relacionavam com o teatro de reportório, que se baseavam na colagem, na livre associação de textos, etc. Apetecia-me experimentar essa possibilidade, não porque o Breve Sumário não tenha tudo o que é preciso para viver enquanto narrativa, mas para que, fabricando-se suspensões de sentido, os nossos ouvidos, de alguma maneira, sofressem um abalo desencadeado pelas linguagens diversas. Esta ideia chegou mesmo a ser lançada como desafio aos actores. Depressa chegámos à conclusão de que não poderiam ser muitas incisões. Teriam de ser poucas, mas substanciais. Aí a contribuição do Pedro Sobrado foi decisiva, por ter ido buscar a tradução do Salmo 139 feita pelo Herberto Helder e um poema do Ruy Belo, não por acaso dois dos meus poetas preferidos, e de caracteres bem diferentes. Enquanto o Herberto recupera um texto que está inscrito na Bíblia, o Ruy Belo deixa aparecer o seu lado mais místico, ou mais religioso.

AMS De certo modo, é o inverso do que sucede com o Herberto Helder que, ao traduzir, contamina o texto bíblico com a sua poesia; o Ruy Belo deixa que o seu poema seja contaminado pela Bíblia…

NC É o eco da sua personalidade religiosa, um eco profundamente humano… O poema é de uma simplicidade tão desarmante que, posto ali, a anteceder o final do auto, dá-me a sensação de que estamos a dar a ver, de novo, como no início, um homem de carne e osso, um homem como nós, a falar da sua condição. Já sem máscaras, já sem adereços… O auto acaba com uma redenção só representada, que não está, por assim dizer, escrita, para além da didascália. Na passagem para essa redenção, a presença da palavra do homem – e, no caso, do actor que interpreta a personagem Adão – pareceu-nos, do ponto de vista estrutural, um atrevimento interessante.

AMS A ideia de “atrevimento” é algo que me parece estar em sintonia com o teu percurso artístico. Verifico que vais alternando textos clássicos, de reportório, e textos contemporâneos. No âmbito da própria obra de Gil Vicente, passas de três textos de tom farsesco para uma obra de devoção. Nesta alternância de paradigmas textuais, nesta abordagem da diversidade das formas, há uma questão de estética dramatúrgica que me parece interessante salientar: tu passas frequentemente de textos que convocam um theatrum mundi – ou seja, um teatro da totalidade – para aquilo a que Jean-Pierre Sarrazac chama os “textos do mundo”, isto é, uma dramaturgia do fragmento, da desmistificação desta metáfora da totalidade. Esta passagem torna-se evidente, por exemplo, quando fazes um Brecht, como o Tambores na Noite [TNSJ, 2009], que podemos justamente considerar um “texto do mundo”, e regressas a um theatrum mundi, como aquele que nos é apresentado no Breve Sumário. Este revezamento é uma forma de afirmares que a totalidade também pode ser moderna e actual, num contexto em que há uma tendência evidente para o fragmento e para a desconstrução?

NC Acho que sim, embora não seja um depoimento, um programa tão claramente assumido. É uma questão pessoal, que tem a ver com a dilatação do tempo, do meu tempo, do tempo que reconheço que posso levar do nascimento à morte. Trata-se do privilégio de, nesse tempo, estando eu a mexer com a matéria da história do teatro, poder viajar em variadíssimos afluentes… É melhor pensarmos no que queremos tratar, ou dizer, do que nos preocuparmos se o que queremos tratar está contido na dramaturgia contemporânea ou na dramaturgia clássica. Acho que devemos ultrapassar um certo medo da linguagem. A época dos textos não é fundamental para definir o nosso posicionamento em relação à arte.

AMS O que acabas de dizer parece-me ser bastante elucidativo relativamente ao facto de, de repente, aparecer este texto no TNSJ…

NC No fundo, no enunciado da tua pergunta, puseste em confronto duas coisas – o theatrum mundi e o mundo do teatro. Que as duas se confundam só me pode parecer uma confusão benéfica. Não faz evidentemente sentido que um teatro nacional declare que só fará textos escritos desde 1920 até aos dias de hoje, ou que só fará teatro do barroco, ou de outra época qualquer. Se calhar, neste momento, estou na situação privilegiada de trabalhar sobre aquilo que eu próprio já intuía, de assumir essa prática que já me levava a fazer as coisas, ou a aceitar os desafios que aceitei durante o meu trajecto.

“Um colégio interno, um convento, uma casa de refugiados, um albergue nocturno”

AMS Na tua encenação, todas as personagens estão permanentemente em cena, numa espécie de huis clos, que convoca um palco dentro do palco, ou o teatro dentro do teatro. Em Beiras, isso também acontecia, e era mesmo uma das chaves do espectáculo. É, aliás, algo de recorrente no teu percurso de encenador, presente em espectáculos como O Grande Teatro do Mundo ou A Ilusão Cómica [TNSJ, 1999]. Porque é que te interessa tanto explorar esta questão? O teatro é uma forma de pensar a vida?

NC O teatro, o próprio palco, é um laboratório, não no sentido restritivo que já teve nalguns momentos da sua história, mas no sentido em que é um lugar de experiência. É oficina, atelier, ginásio. Estamos sempre a falar em ensaiar, em sala de ensaios, e o teatro é provavelmente um ensaio permanente. Tenho, de facto, a tendência para retratar o próprio teatro nos meus espectáculos. Procuro fazê-lo não de uma forma ostensiva, mas deixando o material à vista, por vezes de uma forma já muito recoberta, digamos assim – mostrar sem exibir. Talvez isso seja uma marca geracional. A partir de certa altura, toda a gente dizia que era pós-brechtiana, depois de haver uma geração que se dizia brechtiana… Se calhar, ficaram resquícios, vestígios dessas coisas que se aprenderam, vendo e fazendo. Ficou essa tendência para não se esconder tanto quanto se pensaria necessário para criar a ilusão de que se está a contar uma história pela primeira vez. O desafio maior é que o espectador possa intrometer-se ou ser intrometido por uma determinada narrativa, ser chamado a ela, esquecendo-se de que está perante um jogo ilusório, tendo, no entanto, alguns elementos da fabricação dessa ilusão à vista. Talvez possamos dizer que se os espectáculos de magia expusessem os seus truques e artefactos não seriam menos fascinantes do que são. Se calhar, já era tempo de isso acontecer, já toda a gente está cansada de não saber como os números se fazem. Um espectáculo assim teria um sucesso imenso. [Risos.]

AMS Como deves imaginar vou questionar-te sobre a cenografia. É um elemento que produz um enorme impacto quando entramos. Esta cenografia, que para mim evoca as camaratas de Auschwitz, fez-me pensar no livro de Giorgio Agamben, O Que Resta de Auschwitz. Fez-me pensar nesse novo elemento ético, a “zona cinzenta” de que falava Primo Levi e de que fala também Agamben, nos detidos que nos campos eram conhecidos pelo nome de Muselmänner, cadáveres ambulantes, alienados entre a vida e a morte, entre o homem e o não-homem. Aproveito para citar uma passagem, em que Agamben diz: “Auschwitz é o lugar onde o estado de excepção coincide perfeitamente com a regra, onde a situação extrema se torna no paradigma do quotidiano”. Que significado tem o facto de situares este Breve Sumário da História de Deus num cenário auschwiztiano?

NC Provavelmente é uma ousadia, uma torção… Como eu disse no princípio, quem conduz o auto são as figuras demoníacas, e com inteligência, e foi talvez isso, não digo em absoluto, que me levou a pensar neste espaço. De facto, este ambiente de clausura está relacionado também com a impossibilidade de recriação da realidade, com essa coincidência de que Agamben fala…

AMS Da situação extrema que se torna no paradigma do quotidiano.

NC Sentimos, se calhar várias vezes ao dia, ainda que de forma mascarada, que estamos condenados a um huis clos que só tem um desfecho possível: a morte. Morte que existe como personagem no auto. Há, no final, um gesto de redenção, que apenas se consuma se as criaturas postas no limbo forem dali libertadas, se se abrir uma possibilidade para lá daquele lugar, que não é assim tão definível. Aliás, o problema que se me pôs foi a resolução do que é isso do limbo, e de como é que as criaturas poderiam ser redimidas do lugar e da condição em que estavam, sendo-lhes oferecida uma outra condição – chamemos-lhe a eternidade – através da redenção de Cristo. Eu não costumo desenhar espaços que sejam imediatamente identificados, que inscrevem as narrativas num sítio absolutamente definido, mas também me perguntei se, perante as novas gerações, o que se vê no palco será exactamente aquilo que nós, gerações mais velhas, identificamos como sendo um campo de Auschwitz. Provavelmente aos adolescentes essa imagem não assaltará, pelo menos da mesma maneira como nos assalta a nós. Tanto pode ser Auschwitz como um colégio interno, um convento, uma casa de refugiados ou um albergue nocturno – e esta é talvez a imagem que mais me acomete. É como se eu pudesse reescrever o texto de Vicente e arranjasse para ele um lugar: um albergue, onde aqueles homeless, aquelas pessoas sem casa – e empregamos aqui uma metáfora que descreve bem as personagens da peça –, se instalam, representando de caminho um auto que já conhecem, redistribuindo os papéis entre si. Por isso, reveste-se de grande importância aquele quarto de hora antes do início do auto, quando se abrem as portas ao público e os actores se encontram em cena. É importante porque nos reporta a esse estado prévio. Ainda por cima, assume-se a quarta parede. O espaço cénico é um lugar velado por uma cortina de tule. É evidente que não queria fugir a essa imagem de Auschwitz, mas esta peça não é uma metáfora sobre o nazismo. Pode ser uma metáfora do chamado “povo escolhido”, mas não faria sentido que os sem-abrigo que representam os demónios aparecessem fardados como nazis, com braçadeiras e suásticas. Devo dizer que tenho alguma resistência em aceitar esse tipo de soluções. Trata-se antes de experimentar uma sinalização das coisas que não implique a explicitação absoluta de uma condição. É o desafio de saber até onde se pode ir e onde é que se tem de parar para que as coisas nos façam lembrar outras coisas, sem que haja um fechamento do seu sentido.

“De repente, aparece-me um anjo”

AMS O teu esclarecimento parece-me fundamental e volto a referir, a esse propósito, o livro de Agamben, O Que Resta de Auschwitz, que não é um livro sobre Auschwitz, sobre as circunstâncias históricas de Auschwitz, mas justamente sobre “o que resta”, sobre o testemunho, sobre a sua estrutura e significação, sobre a lacuna que ele comporta. É mais por aqui que estabeleço a relação com o teu espectáculo. Não me parece que haja no teu espectáculo qualquer intenção mimética, pelo contrário. O tipo de escolhas que fazes, a forma como trabalhas as várias linguagens cénicas, que decorre daquilo a que eu chamaria o gesto transversal do teu processo criativo, confirma o que acabas de dizer. Através desta cenografia convocas, de facto, uma memória colectiva alargada, trazendo de alguma forma Auschwitz ou qualquer um desses lugares concentracionários. Por outro lado, convocas também uma memória colectiva restrita, por exemplo, quando trazes as máscaras ibéricas, os caretos de Lazarim, ou – outro exemplo – figurando o Anjo como o Anjo de Portugal, com o escudo nacional. Parece-me haver aqui um desejo de juntar o profano, o carnal, com o religioso, propondo um espectáculo que nunca cai na tentação de um qualquer realismo centrado na representação das cenas bíblicas.

NC Certo. Mas acho que esses elementos são convocados pelo próprio dramaturgo. Quando o Anjo aparece, ele vem saudar as Altezas, a corte do país. Acontece que, recentemente, quando fui ao Museu Nacional de Arte Antiga ver a exposição Encompassing the Globe: Portugal e o Mundo nos Séculos XVI e XVII, fiquei preso, de uma forma muito emocional, à estátua do Anjo de Portugal. Tive mesmo um baque. Ignorância minha, porque a estátua em madeira pertence ao Convento de Cristo, em Tomar. Ia lá especialmente para ver a Custódia de Belém do Vicente ourives, agora restaurada, e apreciar com a devida atenção os pormenores das suas representações. De repente, aparece-me um anjo, uma peça da escola flamenga, praticamente contemporânea do auto. E tive o impulso de transpor para o espectáculo uma réplica deste objecto que me causou uma euforia dos sentidos. Quando o Anjo vem dirigir-se à realeza, achei que poderia começar por apresentar o auto como uma metáfora territorial. É a única personagem que terá um fato diferente, é a única que está identificada com o escudo nacional, que, não por acaso, remete para as cinco chagas de Cristo. Portanto, também aqui não há nenhuma subversão, nenhuma “inventona”. Em relação aos caretos, é óbvio que, mesmo no contexto de uma linguagem muito rendilhada e lírica como é a deste auto, não deixamos de encontrar traços mais rurais e mais típicos da voz do Vicente. Os diabos são muito representados, ainda hoje, nas festas populares e tradicionais, e Lazarim é um dos lugares onde isso acontece. Portanto, metemo-nos no carro e fomos a Lazarim. Tivemos a decepção de só haver duas máscaras de demónios disponíveis, porque esgotam-se. Há todo um comércio numeroso em torno daquelas máscaras no Entrudo e os três artesãos que as fazem produzem-nas especificamente para essa altura do ano. Tinham um GNR e um Cristo, mas não três demónios. Encomendámos mais um. [Risos.] Tudo isto tem a ver com aquilo que dizia há pouco, com esse desejo de dilatar o espaço e o tempo. Por um lado, vamos buscar uma figura da escola flamenga, uma peça do século XVI, e, por outro, vamos buscar as máscaras de Lazarim, que, no fundo, têm alguma coisa de ancestral… Mas queria voltar à ideia de um lugar de reclusão, um espaço que gera uma certa calma desesperante, o huis clos, para dizer o seguinte: se se faz teatro num lugar desses, faz-se com os recursos de que se dispõe, faz-se com as coisas que se têm à mão. Supostamente, é o actor que decide a maneira como vai interpretar a sua personagem e a que coisas, de entre as disponíveis, deve recorrer para a representar. Isto recupera ou alude à tradição do mistério, reenvia para um tempo em que o teatro não era regido por um encenador, ou por um mestre-de-cerimónias. Não resisto a regressar sempre à história da trupe, porque estou convencido de que o teatro, enquanto exercício do colectivo, preserva isso, mesmo que de uma forma residual.

AMS De qualquer forma, todos esses elementos estão ao serviço de uma concepção de espectáculo profundamente pictórica. Os caretos são extremamente estetizantes, fizeram-me lembrar, em determinados momentos, as gárgulas das catedrais góticas. Isto não é novidade – nos teus espectáculos a pintura, a escultura estão frequentemente presentes. Mas, por aquilo que vi, fiquei com a impressão de que a aproximação entre o teatro e a pintura é aqui mais evidente do que noutros espectáculos teus. Ontem, fui para casa a pensar nisto: este é um espectáculo cheio de telas. Estive sempre a ver quadros durante o ensaio, e os mais variados. É como se este huis clos fosse também uma sala de museu orgânica, em que as imagens se vão compondo e decompondo – em pinturas mais panorâmicas, evocando Brueghel ou Bosch, mas também em pequenas telas, como algumas Pietàs renascentistas. As personagens alegóricas, por exemplo, fizeram-me lembrar certas telas pré-rafaelitas. A imagem do Anjo, no plano superior e num ambiente visualmente difuso, fez-me pensar no The Angel Standing in the Sun, do Turner. Isto não será, à partida, uma obsessão minha pela pintura, nem sequer sou da área…

NC Uma das coisas que pode favorecer isso – e tu viste o ensaio ainda sem o desenho de luz – é aquele filtro que está no proscénio, o tule que se interpõe entre nós e a acção. Isso cria uma espécie de bidimensionalidade. É uma bidimensionalidade mais conceptual do que outra coisa, mas que aceitamos quase automaticamente, porque temos a impressão de que não podemos tocar, aceder ao que está lá dentro. É engraçada essa tua ideia do museu vivo, como se fosse um museu de cera, mas com figuras animadas… Esta aproximação seria talvez irresistível, porque, quer queiramos quer não, a pintura esteve sempre muito ligada ao sagrado, aos temas bíblicos, aos motivos teológicos. Dos autores mais demoníacos, como Bosch, até aos mais contemplativos, a história da pintura desenvolveu-se no campo da religião. A Anunciação será, porventura, o acontecimento mais retratado na história da arte. Seja como for, não tive à partida a intenção expressa de fazer disso um fundamento para o espectáculo.

AMS O tratamento que conferes às personagens alegóricas coloca-as em evidência. Gostava que falasses um bocadinho sobre isso, justamente pela teatralidade que elas trazem para o espectáculo.

NC Temos aprendido pela experiência em cena que faz sentido que o Mundo e o Tempo ocupem os lugares mais elevados, assim como o Anjo ou os demónios. Não quer dizer que essas personagens não arrisquem também, nalguns outros momentos, um posicionamento mais térreo, sobretudo quando dialogam com as personagens “humanas”. É uma sinalização que vamos desenvolvendo, uma sinalização da importância hierárquica que, de resto, encontramos na pintura, se nos dermos ao trabalho de analisar as telas.

“Um tapete trágico-melancólico”

AMS A escolha do João Cardoso para a personagem de Adão é, no mínimo, inesperada.

NC Do João Cardoso e da Lígia Roque – Adão e Eva. Começámos os ensaios sem uma distribuição definida. Aliás, as leituras à mesa nas primeiras semanas foram feitas por sorteio, para que os actores pudessem familiarizar-se com o texto sem estarem a pensar que iriam interpretar esta ou aquela personagem. Mas eu tinha a percepção de que, querendo eu humanizar estas figuras, trazê-las para perto de nós, aquele Adão e aquela Eva deveriam ser já o Adão e a Eva do Paraíso perdido, marcados já pela queda, pelo pecado original. Depois, podemo-nos socorrer do facto de o Génesis indicar que Adão morreu com quase mil anos, coisa que, aliás, Vicente diz no auto, ao pôr na boca do Tempo o verso “mil anos há que estou esperando”. Se Adão viveu mil anos, não serão os cinquenta do João a constituir um problema, pelo contrário: fazem do João um adolescente para o papel. [Risos.] Tentámos começar por aqui: as duas primeiras personagens, por assim dizer, condenadas à sua condição humana são personagens maduras. O discurso de Adão e Eva é um discurso de quem perdeu a inocência, ou a ingenuidade, que associamos à adolescência e à juventude. Quando entram em cena, vêm em lamento, falam de uma perda, não são criaturas inexperientes. O facto de Adão e Eva terem já idade veio caucionar, legitimar as suas palavras sobre a condição humana.

AMS No final, é Adão quem traz a Cruz para a cena. É uma espécie de percurso simbólico?

NC Esse percurso está estudado, não fui eu que o inventei. De facto, mesmo as outras personagens bíblicas que o Vicente convoca para o auto são, de uma forma ou de outra, pré-figurações de Cristo, e estão estudadas enquanto tal pela teologia bíblica. Aprendi isso com o Pedro, que me foi ensinando algumas coisas sobre o primeiro poema de onde partiu este segundo.

AMS No final do espectáculo há um movimento, uma troca que me parece interessante: o Redentor sai e entra a Morte. Que final é este?

NC Estamos a falar de um possível final… Em todo o caso, pareceu-me que bastaria figurar a ligação de Cristo com a Cruz, que não seria preciso contar mais. Toda a gente conhece, acho eu, qual é a história cristã, que houve uma ressurreição ao fim de três dias de morte. Portanto, teria que inventar qualquer coisa que aludisse a esse final, mas sem obedecer à necessidade de o descrever. Estou em fase de experiências, tenho ainda algum tempo e quero perceber como é que isso se pode fazer. De qualquer maneira, para responder à tua pergunta, diria que nos instalamos no domínio da poética ou da metafísica e, nesse sentido, juntar a personagem de Cristo à personagem da Morte pareceu-nos interessante. Recorremos a um poema da Else Lasker-Schüler, fazendo dessa declaração final da Morte uma confissão amorosa. Com isto, ensaiei uma espécie de momento ideal: se fosse sempre assim, se houvesse a possibilidade de ser sempre assim… Há uma passagem muito bonita no poema – “Não faz o meu coração fronteira com o teu? / O teu sangue não pára de dar cor às minhas faces”. É uma declaração profundamente amorosa, que pode, através desse efeito de estranheza, prolongar o auto, propondo uma reflexão sobre a nossa condição. Não é um happy end, como seria, pura e simplesmente, a libertação dos presos do limbo. É uma espécie de tapete melancólico, um tapete trágico-melancólico que indicia a possibilidade de, um dia, a Morte se apaixonar, ao ponto de desistir da sua tarefa. Algo que terá atingido com Cristo. Houve ali um encontro amoroso que fez com que…

AMS É uma nota de esperança?

NC Não necessariamente. Como digo, o tapete é muito melancólico, e não há esperança que isso venha a acontecer. Há antes uma espécie de idealização poética de que isso pudesse ter acontecido ali, naquele momento. Provavelmente trata-se mais de falar sobre a condição do amor dos seres vivos, que está também sob ameaça…

AMS São vários os momentos em que há uma aproximação física à Morte, a esta figura alegórica. É o caso de São João…

NC Ele diz-lhe “Leva-me Morte”, enquanto todas as outras personagens recusam ou tentam adiar a circunstância da partida. João Baptista entrega-se, diz que, tendo divulgado Cristo a todos os vivos, tem de anunciar aos cativos do limbo a vinda do verdadeiro Redentor. Por isso, ele abraça a Morte. Quase todos os mortais a tocam, e tocam-lhe de forma cada vez mais íntima. Essa progressão nota-se com Job. De qualquer maneira, ela entra na história trazida ao colo, numa espécie de Pietà, pelo pai, Adão.

AMS Queria colocar-te uma questão intempestiva, uma vez mais a partir de Agamben. Trata-se de um texto do livro Profanações de que gosto particularmente e que tem que ver – parece-me – com o que acabaste de enunciar. O texto chama-se “Desejar” e cito apenas um fragmento: “Comunicar a alguém os nossos desejos sem as imagens é uma brutalidade. Comunicar-lhe as imagens sem os desejos é enfadonho, como contar os sonhos ou as viagens. Mas fácil, em ambos os casos. Comunicar os desejos imaginados e as imagens desejadas é tarefa mais árdua. Por isso o adiamos”. Depois, conclui com o seguinte parágrafo: “O Messias vem pelos nossos desejos, separa-os das imagens para os satisfazer, ou melhor, para os mostrar já satisfeitos. Aquilo que imaginamos já o tínhamos tido. Restam – impossíveis de satisfazer – as imagens do satisfeito. Com os desejos satisfeitos, ele constrói o inferno; com as imagens impossíveis de satisfazer, constrói o limbo; e, com o desejo imaginado, com a pura palavra, constrói a bem-aventurança do paraíso”. A questão intempestiva que te queria colocar a partir deste texto, que me parece ter muito que ver com o teu espectáculo, é a seguinte: o teatro é o espaço onde tentas inscrever os teus desejos imaginados?

NC Sim, claro que sim, sempre. No fundo, o teatro é isso…

AMS Um espaço de partilha destes desejos imaginados e destas imagens desejadas.

NC É uma belíssima definição, talvez um bocadinho tortuosa. O problema tem sido o de saber até onde a corporização daquilo que desejamos, ou imaginamos, pode ainda ser partilhada pelos outros. Acho que, por vezes, só se reconhece que o teatro atinge essa fronteira quando estamos perante grandes iridiscências de género ou formas acossadas de representação que denunciam perigos. Mas acho que os perigos são de outra natureza. Para mim, trata-se de saber quais as coisas que podem ser veiculadas e partilhadas por um maior número de pessoas, mesmo que depois só atinjam uma minoria. Daí pressentirmos a importância de termos à nossa disposição várias linguagens: o que não depositarmos aqui, podemos depositar ali; o que não veicularmos por este meio, veicularemos por aqueloutro. Há sempre o perigo de se poder exceder aquilo que é partilhável, ou de se ficar aquém daquilo que é desejável partilhar. É esse o jogo que faz com que a nossa arte seja, para nós, uma coisa tão importante e, vista de fora, uma coisa tão frívola.

AMS Pensas voltar a Gil Vicente? Ou voltas sempre?

NC Talvez não tão cedo, mas estarei preocupado em que Vicente faça parte da programação do TNSJ. Numa entrevista recente, comentei que fico sempre chocado quando falo de Vicente com colegas estrangeiros e percebo que o desconhecem por completo. Trata-se de um dramaturgo de grande estatura. Além disso, sinto especial inquietação por se ter encerrado o Vicente em clichés, ou porque foi “obrigatório” ou porque não é bem lido; por se considerar Vicente um dramaturgo datado, ou impenetrável, que fala uma linguagem que nos é estranha. O teatro é o lugar dessa necessária descodificação.

* Investigadora em estudos teatrais, tradutora e docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Conversa realizada no Teatro Nacional São João, na manhã de sábado, dia 31 de Outubro de 2009.

Transcrição Cristina Carvalho

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“Quem sois vós que assi estais ornado?”

Índice bíblico-teológico das personagens (por ordem de entrada)

Anjo

“Todo o anjo é terrível”, postou Rilke nas Elegias de Duíno. No grego de que deriva, anjo quer tão-somente dizer mensageiro, ou carteiro. Tal neutralidade funcional não esgota, contudo, a figura do anjo nem pacifica a fascinação que gera – evidenciada, desde logo, nos textos apócrifos e na literatura rabínica. Antigo e Novo Testamentos furtam-se à doutrina estável. O que deles é possível deduzir passa pela noção de uma assembleia de louvor cósmico e uma corte celestial, corpo diplomático e inexpugnável armada de Deus. Entre os seres imponderáveis, contam-se querubins, anjos que sustentam o trono de Deus e em cujas feições se reconhece uma ascendência assiro-babilónica, e serafins, os “ardentes” que celebram a glória divina e executam a coreografia teofânica da vocação de Isaías. A estes os escritos neo-testamentários associam os arcanjos, referindo-se ainda, no que é frequentemente tomado por um esquisso de hierarquia, a “Tronos, Dominações, Principados e Potestades” (Colossenses 1,16). Nos evangelhos, os anjos assomam no princípio e no fim do ministério terreno de Cristo, no episódio da anunciação e na noite da Natividade, junto ao sepulcro e na ascensão aos céus. Em algumas circunstâncias – no deserto, após as tentações, ou no jardim do Getsemani, instantes antes da sua prisão –, é-nos desvelado o secreto comércio de Jesus com os anjos, sobre os quais ele próprio afirma que lhe farão escolta no dia da Parusia. A doutrina do “anjo da guarda” encontra fundamento nos dois hemisférios bíblicos (cf. Salmo 91,11 e Mateus 18,10): prosseguindo o combate que contra Satanás e seus anjos se trava deste o princípio do mundo, os anjos velam pelos homens. Cite-se o imperativo categórico formulado por Kafka: “Age de tal maneira que os anjos tenham alguma coisa para fazer”. PS

Lúcifer

Lucifer é a palavra latina que, na Vulgata, traduz “estrela da manhã” ou “estrela da alva” – o planeta Vénus, astro cujo brilho subsiste quando já o fulgor de outras estrelas recua no romper da aurora. Literalmente, significa “portador da luz”. Aparece em Isaías 14,12 como título aplicado a Nabucodonosor, Rei da Babilónia. O profeta de Judá anuncia a sua destruição, em termos que descrevem a queda de um magnífico anjo de luz. Várias traduções da Bíblia, tomando a Vulgata por referência, mantiveram a palavra “Lúcifer”, adoptando-a como nome próprio. Por seu turno, as obras de Dante e Milton favoreceram a popularização de “Lúcifer” como o nome original de Satanás. (Registe-se, contudo, que a Vulgata aplica também a palavra lucifer a Cristo, enquanto “estrela da manhã” que, na Segunda Vinda, anuncia um novo, e definitivo, dia. Cf. Apocalipse 22,16.) Diversos passos bíblicos autorizam a identificação desse anjo terrífico com o diabo. Em Lucas X,18, ouvimos de Jesus estas palavras: “Eu via Satanás, como um raio, a cair do céu”. Detém especial relevo um trecho de Ezequiel no qual o anúncio prospectivo da ruína do Príncipe de Tiro propicia a descrição retrospectiva da queda de um querubim, residente do Éden: “O teu coração encheu-se de orgulho, por causa da tua beleza. Arruinaste a tua sabedoria, por causa do teu esplendor”. Ao cadastro da soberba e do auto-deslumbramento, Vicente apõe “a grã paixão” de Lúcifer por Deus “criar mundo tão resplandecende”, bem como a “malícia d’inveja” por ver um Adão e uma Eva “feitos gloriosos”. PS

Belial

Outro nome para Satanás. A sua origem é incerta, mas é provável que se trate de uma derivação da expressão hebraica beli ya‘al, que significa “sem préstimo”, o que lhe confere o sentido de inutilidade, traço que distingue a personagem na trindade negativa desenhada por Vicente: no Breve Sumário, Lúcifer pretere o incompetente Belial – “grande oficial” destinado a uma espécie de prateleira dourada – em favor de Satanás, paradigma de eficácia. No Antigo Testamento, o nome surge recorrentemente na formulação “filhos de Belial” ou “homens de Belial”, ferrete que servia para qualificar criaturas especialmente perversas, ou de uma retorcida maldade, o que também se achará na figura do auto. No Novo Testamento, encontramo-lo uma única vez, numa interrogação retórica formulada por Paulo, onde o apóstolo emprega o nome como evidente sinónimo de Satanás: “Que concórdia há entre Cristo e Belial?” (II Coríntios 6,15). A caracterização vicentina de um demónio rixoso, risivelmente ciumento e desastrado, lembra Lutero, segundo o qual “a melhor maneira de afugentar o diabo, se ele não se vergar às Escrituras, é dele zombar e escarnecer, pois não suporta o desdém”. PS

Satanás

Active evil is better than passive good. À luz da sentença de William Blake, Satanás só pode ser considerada uma personagem positiva. Enquanto Lúcifer, “maioral do inferno”, detém uma vocação presidencial e é dado a subtilezas teológicas (explica a um pouco arguto Belial que “onde há força perdemos dereito / que o fino pecado há-de ser por vontade”), Satanás é um fazedor. O nome (do hebraico, satan) significa “adversário” e explicita a sua natureza de opositor do desígnio de Deus para a humanidade, inimigo do Messias e feroz adversário da Igreja de Cristo. No Novo Testamento, é indistintamente chamado de Satanás e Diabo (do grego, diabolos, caluniador). A despeito da sobriedade que caracteriza as menções bíblicas, muitos são os nomes e títulos que lhe são atribuídos: “demónio”, “maligno”, “príncipe deste mundo”, “serpente”, “pai da mentira”, “homicida”, “tentador”, “acusador”, etc. Devem ainda identificar-se com Satanás figuras como Lúcifer e Belzebu. Numa nota curricular, deverá constar que, tendo-se rebelado contra Deus, foi expulso do céu e precipitado no inferno; autor da Queda do homem no Éden, tentou também a Jesus, perverte as Escrituras e opõe-se ao Evangelho de Cristo. Quanto aos disfarces de que no auto faz gala (“oh quantas manhas que sei de lutar / e quantos enganos que tenho estudado”), Paulo adverte que até a forma de um “anjo de luz” ele pode assumir. Anunciada logo após o pecado original (Génesis 3,15, passo a que a teologia atribui a categoria de “proto-evangelho”), a vitória de Cristo sobre Satanás acontece na crucificação e ressurreição. Referindo-se à sua morte, Jesus anuncia: “Agora será expulso o príncipe deste mundo” (João 12,31). Conforme o relato do Apocalipse (20,10), o triunfo do Cordeiro consumar-se-á no Juízo Final. PS

Mundo

No Breve Sumário, a personagem Mundo reproduz, até certo ponto, a ambiguidade do conceito bíblico de mundo. Nas Escrituras, o termo designa “os céus e a terra” criados por Deus, um kosmos que, com as suas leis, beleza e abundância, testemunha a bondade divina. É esse Mundo que, no auto, é convocado a “agasalhar Adão”. Mas, biblicamente, o mundo configura também a humanidade toda, que é objecto do amor de Deus e da redenção de Jesus, como assinala o Cristo do auto quando, dirigindo-se ao Mundo, declara morrer pelo seu pecado. Um dos versículos evangélicos mais célebres acentua esta acepção: “Deus amou o mundo de tal maneira que entregou o Seu filho unigénito para que todo aquele que Nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3,16). Concomitantemente, o conceito de mundo, sobretudo no Novo Testamento, corresponde a uma realidade terrena e temporal sob o domínio de Satanás, a quem o Evangelho de João atribui o título “o príncipe deste mundo” e a II Carta aos Coríntios o cognome “deus deste século”. E assim se compreendem as palavras de Cristo a Pilatos, citadas no auto: “O meu reino não é deste mundo”. Justamente, esse é também o Mundo posto em cena por Vicente, pois é ele quem administra “cruzados, impérios e reinados”. PS/JS

Tempo

Personagem alegórica, cabe-lhe zelar pela escrupulosa execução dos dias e das horas dos homens. “E a ti, porém, / manda-te, Tempo, que temperes bem / este relógio que te dou das vidas / e como as horas forem compridas / de que fez mercê a vida d’alguém, / serão despedidas.” Essa função gestionária assenta uma trilogia simbólica, em que participam ainda o Mundo e a Morte. Se apresenta uma face maquinal, tal qual mecanismo automático, é tão-somente pela sua natureza inexorável: aqui não se trata do tempo circular natural, do dia e da noite ou das estações, nem o tempo histórico das séries longas, mas um tempo breve, veloz e implacável. O Tempo que traz a Morte. Este Tempo é também um dos tempos bíblicos: um tempo que o pecado de Adão e Eva veio, na expressão hamletiana, desconcertar. “Homem de molher nascido / muito breve tempo vive miserando / e como flor se vai acabando / e como a sombra será consumido”, lamenta Job. Muitos dos salmos e provérbios bíblicos são cunhados por este sentimento, como a oração de Moisés: “Como a erva que de madrugada cresce e floresce, e à tarde corta-se e seca […], acabam-se os nossos anos como um conto ligeiro” (Salmo 90). Mas este chronos corre no sentido de um kairos divino: a realização do ministério redentor de Cristo. O tempo dos homens cede lugar ao tempo de Deus. Abrem-se à humanidade as portas de um tempo radicalmente outro: a eternidade. JS

Morte

Das três personagens alegóricas, é a que mais se assemelha à figura de um anjo: a Morte é um mensageiro ao Mundo, enviado sob as instruções do Tempo que, com “relógio muito forte”, o “atiça” a pronunciar a impiedosa sentença. Pela voz de Adão, Gil Vicente empresta-lhe imagens de tormento: “Parteira da terra herdeira das vidas, / senhora dos vermes, guia das partidas, / rainha dos prantos, a nunca ouciosa / adela das dores, / a emboladeira dos grandes senhores / cruel regateira que a todos enlea”. Giorgio Agamben diz que “o anjo anuncia-nos a morte” e que “é precisamente esse anúncio que torna a morte tão difícil”. No Breve Sumário, porém, a Morte supera as cristalizações de tradições literárias ou vernaculares e reflecte uma exegese bíblica e teológica. Contestando Adão que pede mais “um dia de vida”, a personagem indaga: “Nam sabeis vós que sam vossa herdeira / e a vossa filha, a primeira gerada?”. Nascida do pecado original, torna-se uma condição humana, demasiado humana. “O aguilhão da morte é o pecado” e “a tristeza do mundo opera a morte”, sentenciará Paulo (I Coríntios 15,56; II Coríntios 7,10). Condenação inexorável, física e espiritual, a Morte terá na ressurreição de Cristo o seu antídoto e a humanidade a condição de possibilidade da sua salvação. “O salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, em Cristo Jesus”, explicitará também o apóstolo (Romanos 6,23). O teólogo Dietrich Bonhoeffer formula: “Jesus ressuscitou como homem e deu assim ao homem a ressurreição”. JS

Adão

Do hebraico Adam, que significa homem. Nele, todos os começos se concentram, épica ou tragicamente. Segundo a narrativa do Génesis, é o primeiro ser da espécie; o dom da linguagem é-lhe concedido por Deus para nomear a criação animal; o jardim do Éden, metáfora de uma ecologia primitiva sem mancha, é-lhe confiado para o “cultivar” e “guardar”; de uma das suas costelas, Deus criará a primeira mulher – Eva; o seu pecado, induzido pela mulher que cede à tentação de um Satanás travestido de serpente, introduz no mundo o sofrimento e a morte, num sentido que é tanto físico como espiritual; e de administrador do Éden passará à condição de despejado. “Já são derrubados / Adão e Eva, os primeiros casados, / voltas das vodas em pranto mui forte / o gozo em lágrimas, a alegria em morte”, declara o Satanás do auto. Numa relação simbólica que evoca a regeneração adâmica, a genealogia de Jesus apresentada no Evangelho Segundo Lucas ascende ao primeiro homem. Paulo, na sua Epístola aos Romanos, percepciona um paralelismo salvífico: tal como Adão é o pai da humanidade corrompida, Cristo é o autor de uma humanidade redimida. “Se pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça, reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo” (Romanos 6,15). JS

Eva

A primeira mulher, assim chamada por Adão “por ser a mãe de todos os homens”. Do hebraico, com o sentido de “vida” ou “vivente”. Além da maternidade (são seus filhos Abel, Caim e Sete), uma outra condição se lhe cola ao nome e à pele de mulher: a de “pecadora”. É Eva quem se deixa seduzir no Éden pela mentira de Satanás dissimulado na figura de um réptil rastejante: a de que adquiriria um entendimento igual ao de Deus, comendo do fruto proibido – da “árvore da ciência do bem e do mal”. “Eu concebi neste meu spirito / aqueles enganos do anjo maldito”, confessa na obra de Vicente. Teologicamente, torna-se exemplo ou modelo da queda humana: “Receio que, assim como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim também sejam corrompidas as vossas mentes”, escreve o apóstolo Paulo (II Coríntios 11,3). A desobediência não fica sem consequências: desfaz-se a comunicação directa com Deus; o casal é expulso do Paraíso; a mulher terá os filhos com dores; o pecado fecunda na humanidade a morte. “Assi concebida do verbo corrupto / […] vedes a minha triste paridura: / essa é a filha da mãe sem ventura”, declara Eva, no Breve Sumário, quando a Morte entra em cena… A desventura de Eva pode ser posta em contraste com a sorte de uma outra mãe: Maria, a “bem-aventurada entre as mulheres”. Se Eva concebe o pecado, da virgem nascerá Jesus, o Cristo, conforme profetizado por Isaías. As duas mulheres dividem, assim, a história da salvação para os cristãos: Eva é fecundada pelo Mal que condena; Maria pelo Bem que redime. JS

Abel

A narrativa de Caim e Abel (Génesis 4,1-16), filhos dos “primeiros casados”, possui contornos de arquétipo, revelando um dos mais persistentes traços da condição humana: o antagonismo entre irmãos, oposição que redunda historicamente em violência e morte. Depois da revolta contra Deus no Éden, o homem revolta-se contra si mesmo. Abel é pastor, Caim lavrador. Movido pelo ciúme, por ver a sua oferta recusada e o sacrifício do irmão colher o agrado de Deus, Caim lança-se sobre Abel e mata-o. Deus repreenderá o fratricida, a quem a Bíblia atribui a fundação da primeira cidade: “A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra”. (Dá-se uma espécie de transfusão: o sangue derramado na terra, diz um poema de Elsa-Lasker Schüler, “dá uma cor carregada ao céu”.) O Novo Testamento afirmará, todavia, que há um sangue mais eloquente do que o de Abel: o sangue de Cristo (Hebreus 12,24). O primeiro reclama vingança, o segundo convida ao perdão de Deus. Abel inaugura assim o tema bíblico do justo sofredor, linhagem que conhecerá o seu insuperado expoente em Jesus. PS

Job

Este nome encerra um contraste. A personagem é uma espécie de velho conhecido, figura proverbial: sempre que alguém dá provas de suportar reveses é evocada a “paciência de Job”, expressão cunhada pelo apóstolo Tiago. De algum modo, inscreve-se na linhagem de heróis como Prometeu, Ulisses e Sísifo, personagens cuja infelicidade e sofrimento são magnificamente descritos, mas nunca cabalmente explicados. O livro sagrado, monumento da antiga sabedoria judaica, é contudo um quase desconhecido, não se conformando à imagem de uma calma resignação que a tradição nos legou. Nele, Job afigura-se um inquiridor protestante, em carne viva, gritando a sua dor como um animal ferido, reclamando a sua inocência e intimando Deus a prestar contas de tão terríveis provações. Contida nos dois primeiros capítulos e retomada no capítulo final (42), a história de Job tem contornos de lenda: homem temente a Deus e próspero, é atingido por uma vertiginosa sucessão de perdas (bens, filhos, saúde); mantendo-se devocionalmente inquebrantável, é por fim restaurado na sua dignidade e felicidade (happy end que Vicente há-de rasurar no Breve Sumário). O corpo da obra constitui um admirável fórum teológico, lugar de violentos e pungentes debates travados entre Job e os seus amigos, tendo como centro o problema do sofrimento. Deus há-de comparecer neste teatro retórico e, do “seio da tempestade” (38,1), desencadeia uma torrente de perguntas que remetem Job para os mistérios da criação, a imensidão do universo e a soberania da Sua acção no mundo. PS

Abraão

O grande patriarca, raiz do povo eleito, o Pai da fé e de uma nova nação espiritual. O livro de Génesis fala da sua chamada quando, com 75 anos, era ainda Abrão e vivia com o seu pai em Harã. O Senhor, designando-o para sair da sua pátria e tornar-se um grande líder, promete-lhe a sua graça e plena protecção. Garante-lhe uma imensa prosperidade e a paternidade de muitos, fazendo-o num momento adiantado da sua vida, quando ainda não conhecia qualquer herdeiro. Deus cumpriria a sua promessa, conferindo à sua posteridade a terra que vai do rio do Egipto até ao grande rio Eufrates. Homem de grande fé, não se nega a essa trágica e famosa tarefa de entregar sacrificialmente o seu próprio filho, aquele que tanto havia pedido a Deus, Isaac. É uma história que resume dramaticamente a compleição espiritual deste gigante do Antigo Testamento, deste pai Abraão, que, no último momento, e num clímax da abnegação, vê o seu filho ser poupado ao infanticídio que se aprestava para cometer, como resposta ao ordálio de Deus. A canção “Story of Isaac” de Leonard Cohen conta como foi. DJ

Moisés

O resgatado, o homem parecido com Cristo. O seu nascimento é muito conturbado. Perante a ameaça do faraó do Egipto, que havia sentenciado à morte todos os nados varões entre os hebreus, é, com três meses de idade, escondido por sua mãe num cesto de juncos à deriva no rio. A própria filha do faraó acaba por recolhê-lo e o entregar a uma ama (que acabou por ser, inviamente, a sua mãe natural), para mais tarde o adoptar e lhe dar uma educação egípcia. Acossado pelo seu envolvimento no assassínio de um egípcio, Moisés passa um longo tempo de errância no deserto de Midiã, até ouvir na sarça ardente a chamada de Deus para libertar o seu povo. Não obstante alegar limitações pessoais e falta de eloquência, Moisés acede às exigências de Deus e regressa ao Egipto, antecipando as dez pragas. O coração do faraó, endurecido, só dobra com a última destas, a morte dos primogénitos, trágico acontecimento que permite a Moisés levar o seu povo ao êxodo desejado. Mudado bruscamente de ideias, o faraó resolve persegui-lo, culminando no momento épico em que os carros do faraó e o seu exército são tragados por um Mar Vermelho voraz que se abrira para a passagem dos israelitas e logo se fecha sobre os egípcios. É depois, em nova errância de quarenta anos no deserto, que Moisés ascende ao Monte Sinai para ali obter de Deus as tábuas da lei, ou os Dez Mandamentos. DJ

David

É o rei modelo de Israel. O seu governo tem lugar cerca de mil anos antes de Cristo. Sucede a Saul, primeiro rei hebreu, que cai em desgraça devido aos ciúmes da sua glória entre o povo, pelos seus grandes feitos militares: entre eles, a morte de Golias, o gigante filisteu, perpetrada com uma funda e duas pedras. Inaugura a mais gloriosa das dinastias de Israel e o seu filho Salomão será o edificador do primeiro templo de Jerusalém. Figura de estatura mítica, é uma das referências teológicas dominantes do Antigo Testamento: David constitui a mais importante figuração profética do Messias e, segundo os evangelhos, é parte da sua genealogia. Como David, Jesus Cristo nascerá em Belém, passará a tentação no deserto e, num sentido simbólico, será pastor e rei, condições de humildade e glória. David é também o mais célebre músico e poeta hebreu. Hábil tocador de harpa (por essa aptidão ingressa na corte de Saul, para aplacar a sua depressão), é o mais importante salmista – a autoria de 73 das 150 peças do saltério é-lhe atribuída. Têm o seu nome alguns dos mais valiosos salmos de culto, fé e arrependimento – como o que se segue ao adultério com Betsabé. É, nas palavras do profeta Samuel, o “homem segundo o coração de Deus”. JS

Isaías

O seu nome significa a “Salvação do Senhor”. Conselheiro do rei Ezequias, Isaías vive no século VIII a.C. É visto geralmente como o maior dos profetas do Velho Testamento, um verdadeiro profeta-poeta e o seu livro está certamente entre os mais belos escritos da humanidade, dividindo-se entre o relato no cativeiro, descrições de visões celestiais e profecias messiânicas. “Ai de mim que pereço! Porque eu sou um homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos”, diz-nos o capítulo 6, que relata o momento da sua chamada, antes de o profeta ser espectacularmente tocado nos lábios por uma brasa viva que um serafim tirara do altar de Deus com uma tenaz. Os seus motivos e imagens, a sua entrega e o seu sentido de serviço e de fidelidade num meio ímpio, terão certamente inspirado Milton, devoto fervoroso e poeta autor de Paraíso Perdido. DJ

João Baptista

Este é aquele de quem o profeta Isaías falava quando se referia à “voz que clama no deserto (Isaías 40). Precursor e baptizador do Cristo, Jesus, seu primo, João prepara o caminho do Messias, pregando no deserto da Judeia, chamando todos os pecadores ao arrependimento, anunciando o dia da vinda do Senhor. Vestindo pêlos de camelo e alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre, quiçá imitando o seu grande modelo, o profeta Elias, João prega e recebe os arrependidos, baptizando-os nas águas do rio Jordão. O seu trágico fim às mãos de Herodes, depois da dança inebriante da filha de Herodias, a sua cabeça habituada ao pó do deserto agora numa salva de prata, é famosamente documentado em sumptuosas pinturas, desde a Salomé de Gustave Moreau à Decapitação de São João Baptista de Caravaggio, que enche todo o oratório da Catedral de S. João em Valletta, Malta. DJ

Cristo

Palavra de origem grega que exprime o sentido hebraico de “Ungido” (escolhido) e de “Messias” (salvador). Não constitui um substantivo próprio, mas antes um predicativo teológico. A utilização composta do nome “Jesus” com o título “Cristo” designa, à luz do Novo Testamento, a realização histórica das profecias messiânicas – “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo” (Mateus 16,16) – e a vocação redentora da pessoa de Jesus de Nazaré: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1,29). Uma dupla natureza caracteriza Cristo. Ele é, simultânea e integralmente, humano e divino. Nascido de Maria e herdeiro de Adão, intitula-se como “o filho do Homem”; à luz de Isaías e dos Evangelhos, é “Emanuel, que quer dizer Deus connosco”; pela sua ascendência e origem em Belém, é chamado “filho de David” (o mais mítico dos reis de Israel); João apresenta-o como o verbo divino encarnado: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. […] O Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (1,1.14). Cristo apresenta-se a si mesmo sob a fórmula “Eu sou” (o pão da vida, a luz do mundo, o bom pastor, a porta estreita, etc.), que evoca o nome do Deus Yahveh do Êxodo, transmitido a Moisés (“Eu Sou O Que Sou”). Um duplo acontecimento marca o seu ministério redentor: o castigo da morte sem culpa, em substituição da humanidade pecadora; e a ressurreição que vence o poder da morte, para a vida eterna. Para o grande doutrinador Paulo, Cristo “foi declarado Filho de Deus com poder […], pela ressurreição dos mortos” (Romanos 1,4). A fé cristã alimenta-se de uma esperança: “pois assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo” (I Coríntios 15,22). JS

Notas das personagens escritas por Daniel Jonas, Jorge Sobrado e Pedro Sobrado.


Bibliografia

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Bíblia do Peregrino. [Comentada por] Luis Alonso Schökel. São Paulo: Paulus, 2002.

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Bíblia Sagrada: Versão dos Textos Originais. Coord. geral Herculano Alves. Lisboa; Fátima: Difusora Bíblica, 2008.

Bonhoeffer, Dietrich – Ética. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.

New Dictionary of Theology. Ed. Sinclair B. Ferguson, David F. Wright. Packer. Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, cop. 1988.

Nouveau Vocabulaire Biblique. Dir. Jean-Pierre Prévost. Paris: Bayard, 2004.

Prévost, Jean-Pierre – “Introduction”. In La Bible: Job. Trad. Pierre Alferi et Jean-Pierre Prévost. [Paris]: Gallimard, D.L. 2004.

Steiner, George – “Um Prefácio à Bíblia Hebraica”. In A Paixão Intacta: Ensaios, 1978-1995. Lisboa: Relógio D’Água, 2003.

Vocabulaire de Théologie Biblique. Dir. Xavier Léon-Dufour. 13e éd. Les Éditions du Cerf, Paris, 2009.

Nuno Carinhas

Encenação e cenografia

Nasceu em Lisboa, em 1954. Pintor, cenógrafo, figurinista e encenador. É membro da Sociedade Portuguesa de Autores. Estudou Pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Como encenador, destaca-se o trabalho realizado com o TNSJ e com estruturas como Cão Solteiro, ASSéDIO, Ensemble, Escola de Mulheres e Novo Grupo/Teatro Aberto. Entre a extensa lista de companhias e instituições com que colaborou, contam-se também o Teatro Nacional de São Carlos, Ballet Gulbenkian, Companhia Nacional de Bailado, A Escola da Noite, Teatro Bruto, Teatro Nacional D. Maria II, São Luiz Teatro Municipal, Chapitô e Os Cómicos. Como cenógrafo e figurinista, tem trabalhado com criadores como Ricardo Pais, Fernanda Lapa, João Lourenço, Fernanda Alves, Jorge Listopad, Paula Massano, Vasco Wellenkamp, Olga Roriz, Paulo Ribeiro, Joaquim Leitão, entre outros. Nas suas encenações, tem contado com a colaboração de criadores de múltiplas áreas e disciplinas, como João Mendes Ribeiro e Nuno Lacerda Lopes (cenografia); Vera Castro e Ana Vaz (cenografia e figurinos); Bernardo Monteiro, Vin Burnham e Mariana Sá Nogueira (figurinos); Francisco Leal (desenho de som); Nuno Meira, Paulo Graça, Daniel Worm d’Assumpção, Carlos Assis, Dominique Bruguière, João Carlos Coelho e Rui Simão (desenho de luz); Luís Madureira e João Henriques (voz e elocução). Em 2000, realizou a curta-metragem Retrato em Fuga (Menção Especial do Júri do Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente, 2001). Escreveu Uma Casa Contra o Mundo, texto encenado por João Paulo Costa (Ensemble, 2001). Dos espectáculos encenados para o TNSJ, refiram-se, a título de exemplo, O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de la Barca, trad. José Bento (1996); A Ilusão Cómica, de Corneille, trad. Nuno Júdice (1999); O Tio Vânia, de Tchékhov, trad. António Pescada (2005); Todos os que Falam, quatro “dramatículos” de Beckett, trad. Paulo Eduardo Carvalho (2006); Beiras, três peças de Gil Vicente (2007); e Tambores na Noite, de Bertolt Brecht, trad. Claudia J. Fischer (2009). É, desde Março de 2009, Director Artístico do TNSJ.

Salão Nobre

[20 Novembro | 20 Dezembro 2009]

terça-feira a sábado 14:00-19:00 domingo 14:00-15:00

(e durante o período dos espectáculos, exclusivamente para os espectadores)

Exposição

Vicente

pinturas de Ilda David’

produção TNSJ

Não é teóloga, filóloga, académica ou representante clerical, mas dedicou os últimos anos da sua vida a um monumental exercício de hermenêutica dos textos sagrados, em particular da tradução forjada por esse português improvável do século XVII: João Ferreira de Almeida, protestante fixado na longínqua ilha de Java. Falamos das pinturas que Ilda David’ concebeu para A Bíblia Ilustrada (Assírio & Alvim), mas também para exposições como a que, muito recentemente, dedicou ao “vulcão” chamado Paulo de Tarso. Por ocasião da montagem do Breve Sumário da História de Deus – auto vicentino que resgata personagens e passagens bíblicas, encenando uma visão teológica da história –, Nuno Carinhas convidou a artista plástica a prosseguir a sua fulgurante exegese, instalando-se agora nas pregas do texto de Vicente e da sua retórica. Série de telas originais encastradas nos nichos das paredes do Salão Nobre do TNSJ, Vicente faz-se de ilustrações que não explicam nem reduzem, mas abrem caminho para o interior do texto e ampliam essa experiência religiosa a que chamamos “leitura”.

Visão suspensa

Bernardo Pinto de Almeida

Longamente a pintura de Ilda David’ se debruçou, lenta, e desde os seus princípios, sobre figuras de referência mitológica. Breves cenas misteriosas cuja identificação jamais se mostrou fácil, mas que bebiam na poesia e nos mitos a ordem da sua referenciação mais profunda, como se desses mesmos universos fosse, só, o gentil eco. Habitada da voragem da poesia, ela transparecia um continente misterioso, e pobre, rude nas suas referências à paisagem, que pouco mais era, em cada uma delas, do que uma forma desabitada de antes de haver o mundo. Uma terra de estranheza e de murmúrios, de lembrança lunar, iluminada de reflexos muito breves.

Ganhou, depois, uma dimensão mais abstractiva.

A essas figuras suspensas de que fora invadida preferiu, mais tarde, abrir-se àquilo que, delas já despojado, permanecia como um fundo, ou um resíduo, feito de formas breves, evoluindo como gretas que se abriam sobre o próprio corpo da pintura. Eram ventos. Chamei-lhes então coisas atmosféricas por não saber de que outro modo as nomear, de tão leves e suspensas que elas eram, de tão próximas de um ether, do quase imperceptível, ganhando a sua forma pouco mais que mínima nos limiares do informe e de uma observação cada vez mais silenciosa do mundo.

Foi este silêncio sobretudo, quer dizer: este modo como fugia por dentro de si a todas as palavras que a pudessem inscrever, o que mais longamente caracterizou a obra de Ilda David’. Por muito que o seu registo mais íntimo fosse inspirado da poesia ou dos mitos, o que é de facto a mesma coisa, a sua parte visível era sempre a de um trazer à presença um conhecimento mais fundo do invisível.

Eram feitas de silêncio e de rudeza. Porque se nada diziam as pinturas, o seu clima era o de uma suspensão de qualquer fala, remetendo sempre para uma contemplação mais interior do próprio mundo. Rasas às palavras, essas pinturas abriam, no seu despojamento agreste, para a rudeza mais íntima do mundo. Eram como volutas de fumo, ou como emanações do próprio ar. Linhas incertas vinham cortar as suas telas quais fendas, lancinantes feridas abertas sobre o corpo cansado da pintura e da sua história muito antiga. Mas por elas se via, como se por uma estreita abertura, uma outra dimensão do real, uma zona quase opaca, impenetrável, de que restava um clima, uma atmosfera, um estreito fio de sentido, comunicando uma forma muito própria do sentir.

Agrestes visões de um outro espaço que, nessa rudeza, nessa fuga a uma qualquer vontade de embelezamento, atentava antes no que parecia de repente ser mais real: o nascimento do mundo, antes mesmo de nele haver um verbo. Antes do corpo, portanto, e da linguagem. Antes de tudo o mais que só depois se viu e devagar se foi tornando inteligível. Vibrações de luz e de atmosfera, rodopios do ar num fundo congelado, abissal, antes de haver o humano.

Visões, talvez, da criação. Tanto maior sendo então sua surpresa quanto nelas não se adivinhava uma razão, um fio conduzindo a algum entendimento. Eram imagens da mais funda intuição, registos de lugares ainda por ver, ou tão antigos e remotos e perdidos, que já deles não restava outra memória. Como as gretas traçadas num chão seco, que era também o chão antigo da pintura, a sua pele curtida pelo tempo, apareciam como marcas num deserto, e ao mesmo tempo como o fumo de vulcões cujo lume houvesse sossegado.

As suas novas pinturas nascem dessas. Mas onde antes as linhas rodopiavam, ganham agora formas de sentido. Umas quantas se organizam e são árvores, como outras são montanhas ou figuras. O seu mundo habitou-se. E onde outrora havia Ícaros caídos, erguem-se agora anjos. Aparições. Mistérios. Figuras inespessas que nascem de luminosos fundos, como se emanassem de dentro dessa terra.

E são aparições de luz. Aprenderam de Pascoaes esses mistérios. Comunicam o que nasce do invisível e procuram dar-lhe rostos, formas, a presença de coisas intocáveis, mas ainda assim visíveis. Anjos e figuras nascem de um mesmo chão. Humaníssimas presenças, delas parece que escutamos vozes, um vozear longínquo e secreto. Anunciam milagres e prodígios. Uma nova terra da abundância. Recriam uma palavra muito antiga. Nas volutas das linhas, elaboram visões do paraíso, ou de uma terra humilde e piedosa. Há uma crucificação que evoca Régio: a de um Cristo humanizado que agoniza, mas que aos poucos se abandona à abnegação. E que lembra, de repente, um outro Cristo, o de Gauguin, pouco mais que índio nu, em seu sábio silêncio.

E o que era antes lunar, desabitado, dá agora lugar a um outro espaço, diverso fundo que toca o misticismo. Ilda David’ vê as figuras piedosas dessa outra Criação, a do cristianismo, e dá-lhe uma forma que surpreende quem assiste. Porque as figuras nascem da própria natureza, e são já parte dela, como esta o é delas. Umas e outra se confundem, para dar a ver nos mesmos sulcos da pintura uma aura qualquer de luz nascente. Por isso as disse místicas, porque nascem da luz, já não da treva, como se o mundo fosse, nelas, uma visão suspensa.

Há clarões de luz que quase cegam. Entre vermelhos e amarelos muito intensos, os seus fundos de cor quase abstractos, as gretas trazem à presença essas figuras. É a pintura que se faz anunciação. E estas telas montadas umas com as outras são fragmentos do mundo e da sua luz. Sobre elas, há janelas inesperadas. Vemos montanhas, árvores, jardins. Ou rostos breves, fugazes se adivinham. São sempre linhas e luzes que respiram, umas nas outras se hão-de entretecer, como se fossem mutuamente respirando. Céus e montanhas, rios e florestas, gente que passa leve, rente ao mundo. É uma visão de Cristo que esvoaça, que dança como o de Nietzsche sobre o mundo. E estas figuras falam, e estas figuras cantam. E quando as vemos parece que escutamos.

Salão Nobre

[26 + 27 Novembro]

[3 + 4 + 5 Dezembro]

Conferências

O que resta de Deus

26 Novembro

quinta-feira 18:30

José Tolentino Mendonça

Armando Silva Carvalho

moderação Jacinto Lucas Pires

27 Novembro

sexta-feira 18:30

Ilda David’

Paulo Pereira

moderação Bernardo Pinto de Almeida

3 Dezembro

quinta-feira 18:30

Clara Pinto Correia

Tiago Cavaco

moderação Daniel Jonas

4 Dezembro

sexta-feira 18:30

Amélia Polónia

José Augusto Cardoso Bernardes

moderação José Luís Ferreira

5 Dezembro

sábado 17:00

Conversa com Alexandra Moreira da Silva, Daniel Jonas, D. Manuel Clemente e Nuno Carinhas

comissário Pedro Sobrado

organização TNSJ

Entrada Gratuita

“Muitos são os chamados, poucos os escolhidos.” Este poderia ser o slogan bíblico para O que resta de Deus, se acaso precisássemos de algum. Porque o talento e a competência dos eleitos aparentam dispensar qualquer estribilho publicitário. Na sessão inaugural, José Tolentino Mendonça – teólogo e poeta que vem renovando os modos de ler as Escrituras – encontra outro poeta, Armando Silva Carvalho, que se tem movido no interior de um halo teológico, traduzindo os ditos dos Padres do Deserto e respigando orações de múltiplas tradições. A pintora Ilda David’, cujos mais recentes trabalhos se debruçam sobre os textos bíblicos, aborda a experiência da representação do sagrado, enquanto Paulo Pereira – responsável pela direcção da História da Arte Portuguesa publicada em 1995 – estabelece as ligações entre a iconologia religiosa do século XVI e o teatro vicentino. A terceira sessão junta Clara Pinto Correia, romancista e bióloga que tem incidido sobre o problemático interface ciência/religião (destaque-se o livro Assim na Terra como no Céu), e Tiago Cavaco (aka Tiago Guillul), pregador baptista e punk-rocker da editora FlorCaveira. Na sessão que alia investigadores das Universidades do Porto e Coimbra, Amélia Polónia parte de Vicente para abordar as relações entre cultura popular e cultura de elite na época moderna e José Augusto Cardoso Bernardes – autor de uma das mais consistentes obras dedicadas a Vicente – efectua um voo rasante sobre Breve Sumário da História de Deus. A encerrar, uma conversa sobre o auto e a sua transfiguração cénica, partilhada pelo Bispo do Porto, D. Manuel Clemente, pela investigadora teatral Alexandra Moreira da Silva, pelo poeta Daniel Jonas (autor de uma tradução de Paraíso Perdido de Milton) e – last but not least – pelo encenador, Nuno Carinhas.

[21 + 22 Novembro 2009]

sábado 14:00-19:30 domingo 11:00-13:00 | 14:30-17:30

Oficina de Técnica Vocal

por João Henriques

[25 Novembro 2009]

quarta-feira 14:30

Masterclass

Construção e Dramaturgia de Breve Sumário

por Nuno Carinhas

Para além da exposição Vicente, do ciclo de conferências O que resta de Deus e da leitura de Paraíso Perdido, o TNSJ promove duas outras actividades, de cariz formativo, complementares à apresentação de Breve Sumário da História de Deus. No contexto da montagem deste auto, que insiste em particular sobre o poder performativo da palavra (“não pelos olhos lhe armaram peleja, mas pelos ouvidos”, noticia o Anjo), João Henriques – responsável desde 2003 pelo trabalho de voz e elocução de múltiplas produções da Casa – dirige uma Oficina de Técnica Vocal especialmente destinada aos Embaixadores do TNSJ e a professores do ensino secundário. Na semana após a estreia, o encenador Nuno Carinhas sumaria numa masterclass o processo de criação desse mundo que todo o espectáculo teatral em si (re)configura. “Hajamos conselho sobre esta façanha”, recomenda Lúcifer.

Inscrições e informações junto do departamento de Relações Públicas (T 22 340 19 56; e-mail rp@tnsj.pt).

[14 Dezembro]

segunda-feira 20:00-01:00

Leitura Integral

Paraíso Perdido

de John Milton

tradução Daniel Jonas

direcção Nuno Carinhas, Daniel Jonas

música VortexSoundTech

com a participação de actores e leitores convidados

produção TNSJ

classificação etária Maiores de 12 anos

Entrada Gratuita

Partidário da causa republicana e fervoroso adepto da execução de Carlos I, John Milton (1608-1674) sobrevive como que por milagre à restauração da monarquia e do absolutismo em Inglaterra. Talvez essa sobrevivência tenha um único propósito, providencial: que um Milton cego, arredado da esfera pública, dite à filha uma obra cuja posteridade crítica será marcada por violentos confrontos: Paraíso Perdido, longo poema épico sobre a Queda do Homem e a consequente expulsão do Paraíso, também classificado como uma assombrosa reflexão retórica sobre o bem e o mal, e a liberdade – a liberdade para escolher, a liberdade para cair. O irresistível parentesco com o Breve Sumário da História de Deus leva o TNSJ a promover uma autêntica maratona de leitura – com duração prevista de quatro a cinco horas – dos 10.565 versos do clássico, beneficiando da tradução que Daniel Jonas fez da magnum opus desse parente inglês de Homero e Virgílio. Um acontecimento apenas para eleitos, pois, como anota o tradutor no prefácio, “o poema já escolheu os seus leitores”.

tnsj

Teatro Nacional São João

Plateia e tribuna 15€

1º Balcão e Frisas 12€

2º Balcão e camarotes de 1ª ordem 10€

3º Balcão e camarotes de 2ª Ordem 7€

Condições especiais

Grupos (+20 pessoas) € 10,00 Escolas e Grupos de Teatro Amador € 5,00 Cartão Jovem e Estudante desconto 50% Mais de 65 anos desconto 50% Quinta-feira desconto 50% Profissionais de Teatro desconto 50% Preço Família (agregados familiares compostos por três ou mais pessoas) desconto 50%

Teatro Carlos Alberto

Plateia 15€

Balcão 10€

www.tnsj.pt 

Informações Linha Verde TNSJ │ 800 10 8675

Número grátis a partir de qualquer rede.

Teatro Nacional São João

Praça da Batalha

4000-102 Porto

Teatro Carlos Alberto

Rua das Oliveiras, 43 

4050-449 Porto

Mosteiro de São Bento da Vitória

Rua de São Bento da Vitória

4050-543 Porto

Geral

T +351 22 340 19 00 

F +351 22 208 83 03 

geral@tnsj.pt

Atendimento e Bilheteira

T +351 22 340 19 10 

F +351 22 208 83 03 


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