A Mãe, de Bertolt Brecht | 12-21 de Fevereiro no Teatro Nacional São João
A Mãe ©José Frade
Cheguei às cidades nos tempos da desordem
Quando aí grassava a fome.
Vim viver com os homens nos tempos da revolta
E com eles me revoltei.
E assim passou o tempo
Que na terra me foi dado.
Bertolt Brecht – Excerto de “Aos que virão a nascer”. In Tambores na Noite: Manual de Leitura. Porto: Teatro Nacional São João, 2009. p. 39. Trad. João Barrento.
A perplexidade do homem face ao destino, ao sofrimento, face às suas insuficiências, face à sociedade, já não é imputada, como na tragédia ateniense, à fatalidade e ao acaso, ao mundo da noite, mas à injustiça que representa o domínio que uma classe exerce sobre outra. O trabalho de elucidação crítica de Brecht consiste precisamente em mostrar que não existe fatalidade. Que a emancipação é um processo de conhecimento (através do saber e através da luta!). Daqui decorre, uma vez mais, a metáfora da ciência – que não é mais do que uma metáfora!... Brecht enquanto grande educador socrático poderia fazer seu este imperativo judaico: “A Tora não é uma obrigação, mas uma ambição de conhecimento. Morrer ignorante, eis o verdadeiro insulto para um judeu”.
Michel Deutsch – Excerto de “Notes Complémentaires”. In Brecht après la chute: Confessions, mémoires, analyses. Paris: L’Arche, D.L. 1994. p. 49-50.
É mais fácil definir os objectivos do teatro épico a partir da noção de palco do que do conceito de um novo tipo de drama. O teatro épico faz justiça a uma circunstância a que se deu pouca atenção. Pode dizer-se que se trata de atulhar o fosso da orquestra. O fosso que separa o actor do público, como os mortos dos vivos, esse abismo cujo silêncio intensifica o sublime no teatro, cuja ressonância aumenta o êxtase na ópera, esse abismo que carrega consigo da forma mais indelével os vestígios da sua origem sacral, foi perdendo cada vez mais a sua função. Por enquanto, o palco ainda é elevado. Mas já não se ergue a partir de uma profundidade imperscrutável: transformou-se num estrado. A peça didáctica e o teatro épico constituem uma tentativa de se instalar sobre esse estrado.
Walter Benjamin – Excerto de “O que é o Teatro Épico?” (1939). In Tambores na Noite: Manual de Leitura. Porto: Teatro Nacional São João, 2009. p. 31. Trad. João Barrento.
A Mãe
Die Mutter (1932)
de Bertolt Brecht
música Hanns Eisler
tradução Yvette K. Centeno, Teresa Balté
encenação Joaquim Benite
direcção musical Fernando Fontes
cenografia Jean-Guy Lecat
figurinos Sónia Benite, Ana Rita Fernandes
desenho de luz José Carlos Nascimento
voz e elocução Luís Madureira
penteados Sano de Perpessac
assistência de encenação Rodrigo Francisco
assistência de cenografia Joana Ferrão
intérpretes e personagens
Teresa Gafeira Pelagea Vlassova
Alberto Quaresma Anton Rybin; Médico
André Albuquerque Pavel Vlassov, filho de Pelagea Vlassova
Carlos Gonçalves Smilgin, um velho operário
Carlos Santos O operário Karpov; O magarefe Vassil Iefimovitch
Celestino Silva Operário; Transeunte; Cozinheiro
Daniel Fialho Operário; Cozinheiro
Laura Barbeiro A sobrinha do campo; Uma criada; Operária
Luzia Paramés Uma mulher; A senhoria
Manuel Mendonça O desempregado Sigorski; Operário; Transeunte
Marco Trindade Um polícia; Operário; Um fura-greves
Marques D’Arede Nikolai Vessovchikov, o professor
Miguel Martins Comissário; Porteiro; Guarda da prisão; Um fura-greves
Paulo Guerreiro Andrei Nachodka; Funcionário
Paulo Matos Ivan Vessovchikov; Operário
Pedro Walter O polícia da fábrica; Iegor Lusckin, um trabalhador rural; Operário
Sofia Correia Masha Chalatova
Teresa Mónica A mulher do magarefe; Uma mulher vestida de preto; A mulher pobre
intérpretes e instrumentos
João Frade acordeão
Cláudio Silva trompete
Rudolfo Freitas percussão
produção Teatro Municipal de Almada
estreia [6Jan2010] Teatro Municipal de Almada
duração aproximada [2:30] com intervalo
classificação etária M/12 anos
Teatro Nacional São João
[12 | 21 Fevereiro 2010]
quarta-feira a sábado 21:30 domingo 16:00
“É muito mais importante formular perguntas do que dar respostas”
Joaquim Benite*
Dilemas
Na cena “Pelagea Vlassova aprende a ler”, que é uma das mais famosas na peça, a mãe diz claramente que “ler é luta de classes”, contrariando sempre a posição de Sigorski, outro dos alunos, que é um radical, e que contesta o professor; ora, ela considera que aprender é já em si mesmo um acto revolucionário. Esta é uma ideia muito interessante, porque tem a ver com uma visão global de Brecht em relação ao seu teatro, no que diz respeito ao tratamento dos assuntos de forma dialéctica. Nós nunca somos colocados perante uma posição apologética ou perante uma asserção prosélita, mas sempre face a dilemas. Existe uma cena nesta peça – “Pelagea Vlassova recebe a sua primeira aula de economia” – em que as posições da mãe e dos operários são postas em confronto de forma vigorosa, como se se tratasse realmente de uma disputa sobre vários aspectos da vida económica, da organização política, social. É desta maneira que Brecht expõe aos espectadores os argumentos dos dois lados. […] Portanto, a interrogação – pôr as coisas sob a forma de interrogação – é também outro dos processos básicos de Brecht. É muito mais importante formular perguntas do que dar respostas. A resposta vem por si…
Teatro épico versus teatro dramático
Dificilmente podemos
afirmar que o teatro de Brecht se enquadra nesta ou naquela escola.
É um teatro concebido de uma maneira muito particular, muito própria,
uma galáxia onde é axial a necessidade de criar um teatro que seja
contrário ao teatro da ilusão; um teatro onde a consciência do
espectador
seja desperta e não anulada por efeitos de ilusão, de tal modo que
possa ser manipulada. A contradição fundamental, como ele afirma no
Pequeno Organon, é aquela que existe entre o seu teatro e o teatro
contra o qual ele se manifesta, é a contradição entre o teatro épico
e o teatro dramático, ou seja, o teatro aristotélico, que conduz à
ilusão, e o teatro anti-aristotélico, que procura destruir a ilusão,
não permitindo que o espectador perca a consciência de que está no
teatro. Outra ideia fundamental de Brecht é a de que serão necessárias
novas formas para fazer um teatro novo, um teatro que tenha outra função
social e que possa chegar aos espectadores de uma maneira eficaz; não
se pode transpor um novo conteúdo – um conteúdo científico, como
ele o definia – nas formas tradicionais. Para isso, ele baseia-se
em tradições anteriores – em Shakespeare, na commedia dell’arte,
no teatro do Siglo de Oro, nas linguagens das formas teatrais do
Oriente,
como o Nô ou o Kabuki –, ou seja, em muitas referências contrárias
ao Naturalismo que nessa altura predominava na Europa. E também a fonte
expressionista, muitas vezes ignorada (as primeiras obras de Brecht
revelam uma marca expressionista evidente e permanece sempre um traço
expressionista em toda a sua obra, até ao final).
Descontinuidade
Uma das minhas
preocupações
nesta encenação é tratar cada momento da forma específica como
ele foi construído e não procurar forçar as coisas num sentido ou
no outro; aliás, foi buscando isso mesmo que Brecht sequencia a peça
em cenas ou atribui títulos a cada uma delas; para ele não existe
a peça completa, a sua ideia central é a de que o teatro é uma coisa
que está sempre em construção (basta ver as várias versões de
A Mãe, de Baal e de quase todas as suas peças). […] É
a descontinuidade e incompletude brechtianas que tornam a sua obra
seminal
para a criação pós-moderna; é essa construção e desconstrução
permanente – a forma, portanto, e não a sua visão política –
que o tornam hoje ainda tão atraente para os jovens criadores.
Cenografia
Embora nós [eu e o
cenógrafo
Jean-Guy Lecat] trabalhemos com uma história de teatro já muito
diferente
da de Brecht – que usava cortinas, papel de cenário, elementos que
nós já não usamos –, há, de facto, por exemplo, uma alusão à
meia cortina brechtiana no muro que divide a cena, embora ele tenha
sido construído por alusão à arquitectura das zonas industriais de
Alcântara. O objectivo, o sistema, é o mesmo: criar um espaço que
esteja a meio caminho entre a alusão e o teatro. O cenário é todo
fragmentado, movido manualmente, iluminado por uma luz crua e
denunciadora.
Não o quis naturalista, ainda que haja aspectos realistas, mas que
são jogados numa maneira alusiva: não numa maneira que copie idealmente
a realidade, como se não houvesse representação. É preciso que o
espectador mantenha a consciência de que está sempre no teatro.
Música
[Para regressar à
musical original de Hanns Eisler] contei com a colaboração do maestro
Fernando Fontes, que trabalhou recentemente comigo no projecto O
Doido e a Morte [a peça de Raul Brandão e a ópera homónima de
Alexandre Delgado]. É um músico por quem tenho grande admiração,
e que aqui se responsabilizou pelos arranjos para um conjunto de
acordeão,
trompete e percussão, parecendo-me que é a primeira vez em Portugal
que se usa tal conjugação de instrumentos, onde as sonoridades eruditas
se mesclam com a irreverência do jazz e a marca popular, trazida pelo
acordeão, fusão de grande modernidade e actualidade, já de algum
modo presente na partitura original, como pudemos também verificar
em composições contemporâneas, noutro projecto que dedicámos em
2008 à música sobre poemas de Brecht [Canções de Brecht].
Elenco
Não quis fazer uma encenação adaptada, cortando cenas; escolhi ter a música original de Eisler… Repare, se dirijo um Teatro Municipal, acho que tenho responsabilidades culturais que ultrapassam a mera criação artística; portanto, se faço uma peça de Brecht, que as pessoas nunca viram ou de que apenas ouviram falar, é natural que a procure mostrar na sua integralidade; aliás, talvez eu não fizesse a peça se não tivesse encontrado uma tradução com o rigor e a excepcional qualidade literária da de Yvette K. Centeno e Teresa Balté. Portanto, por um lado, é o meu gosto artístico, e, por outro, o desejo de permitir que o público veja um espectáculo que de outra maneira não poderia ver; pela mesma razão fiz integralmente O Mercador de Veneza ou Otelo. São textos tão relevantes que, modificá-los ou truncá-los, interfere com o seu significado global. E, como temos pouco dinheiro, decidi equilibrar um elenco de grandes actores, como Teresa Gafeira, Carlos Gonçalves, Carlos Santos, Marques D’Arede, Paulo Matos, Luzia Paramés ou Alberto Quaresma, com jovens que estão a começar a sua carreira ou acabaram a sua formação. Penso, todavia, ter atingido uma homogeneidade que, sem vedetismos, todos integra num trabalho coerente e rigoroso.
* Montagem de excertos de “Aprende-se em conjunto, aprende-se com a prática”, entrevista conduzida por Miguel-Pedro Quadrio. Mais TMA: Informações do Teatro Municipal de Almada. N.º 6 (Jan. 2010). p. 3-6.
“Uma experiência
sociológica sobre a transformação revolucionária das mães”
Vera San Payo de Lemos*
A peça A Mãe baseia-se no romance Mat de Maxim Gorki, publicado primeiro em inglês em 1906, durante o exílio do autor nos Estados Unidos. Proibido na Rússia até 1917, o romance obtém uma ampla divulgação através da sua publicação nos jornais ligados ao movimento operário na Alemanha, em França e em Itália, vindo a tornar-se mais tarde, depois do triunfo da Revolução de Outubro, um dos principais modelos da teoria do realismo socialista. Tomando como exemplo a figura de Pelagea Vlassova, uma viúva, analfabeta, que começa por se envolver na luta dos operários para apoiar o seu filho Pavel e acaba por se transformar numa militante empenhada na causa do socialismo, o romance descreve a formação do movimento revolucionário na Rússia e a actuação do partido bolchevique na preparação da Revolução de 1905.
Em 1931, por sugestão de Gorki, o autor alemão Günther Weisenborn elabora com Günther Stark, dramaturgista do teatro Volksbühne de Berlim, uma versão cénica do romance para ser apresentada nesse teatro. Interessado na teoria do teatro épico, Weisenborn propõe a Brecht uma colaboração no projecto, ao qual se vêm a juntar também Hanns Eisler, Elisabeth Hauptmann e Slatan Dudow. No novo grupo de trabalho, a versão de oito cenas elaborada por Weisenborn e Stark transforma-se, entre o Verão e Outono de 1931, na primeira versão de A Mãe de Brecht, que estreia em 17 de Janeiro de 1932 no Komödienhaus em Berlim, com música de Eisler, cenário de Caspar Neher, projecções de Wolfgang Roth e encenação de Emil Burri.
Nas primeira notas sobre a peça, escritas depois da estreia em 1932 e desenvolvidas para a primeira publicação em 1933, Brecht define-a como “uma recriação do romance de Gorki A Mãe”, “escrita no estilo das peças didácticas”, “uma peça de dramaturgia anti-metafísica, materialista, não-aristotélica”. Para além de estabelecer ligações diferentes entre os episódios e as cenas, a peça distingue-se do romance de Gorki e da versão cénica de Weisenborn e Stark sobretudo em dois aspectos: a acção não termina em 1905, mas prolonga-se até à Revolução de Fevereiro em 1917 e as cenas, aumentadas para catorze na versão da estreia e para quinze na primeira versão publicada, são entrecortadas por nove canções e coros para os quais Eisler compõe a música. Brecht não se baseia, portanto, apenas no romance de Gorki (que termina com Pavel a responder perante o tribunal czarista pelos seus actos subversivos), mas também noutras fontes, como os relatos feitos por militantes revolucionários, as suas próprias vivências dos conflitos sócio-políticos na República de Weimar, o 1.º de Maio sangrento em Berlim em 1929 e a leitura de livros como Recordações de Lenine de Clara Zetkin ou Contra o Reformismo de Rosa Luxemburgo, sobre cuja luta Brecht tinha começado a escrever uma peça em 1926/27 com o título As Últimas Semanas de Rosa Luxemburgo. A figura de Rosa Luxemburgo, cujo perfil de lutadora se reflecte em Pelagea Vlassova, é expressamente recordada e homenageada nos quatro espectáculos realizados para “centenas de conselhos de empresas e dirigentes de grupos de mulheres” nos dias antes da estreia em 17 de Janeiro, em especial no dia 15 de Janeiro, data do aniversário da sua morte.
Caracterizando-se por uma grande simplicidade estética e versando conteúdos políticos muito claros e concretos, o espectáculo de estreia de A Mãe divide o público e a crítica tanto no plano estético como político. No texto das Notas de 1933, Brecht comenta a recepção do espectáculo de estreia com base numa montagem de citações das críticas publicadas na imprensa. O sucesso obtido junto do público operário é corroborado pelas críticas positivas na imprensa comunista, mas na chamada imprensa burguesa a maioria dos críticos exprime opiniões negativas sobre o espectáculo, focando sobretudo três aspectos: a falta de psicologia no retrato das personagens, que se reflecte em formas de actuação sem emoção e sem vibração para o espectador; o predomínio do político sobre o literário, que torna o espectáculo panfletário e lhe confere uma finalidade apenas agitadora; a simplificação dos problemas apresentados, nomeadamente a linearidade do processo de aprendizagem política da Mãe, que resulta demasiado primitiva, própria para ser entendida por idiotas e analfabetos.
Como a peça foi representada por vezes para um público burguês e a maior parte das vezes para um público operário, Brecht compara as reacções dos dois tipos de público e conclui que, enquanto os espectadores burgueses reagiam com enfado e manifestavam dificuldade em seguir a acção e apreender o essencial, os espectadores operários estavam atentos às subtilezas do diálogo e captavam de imediato o cerne das questões. Na reacção do público burguês, Brecht detecta a separação, igualmente burguesa, entre entretenimento e aprendizagem, que realça o entretenimento como prazer e degrada a aprendizagem associando-a à sensação de incapacidade e ao tormento da transmissão de conhecimentos na escola. A esta degradação do valor da aprendizagem junta-se o desprezo por aqueles que são úteis e pelo próprio sentido de utilidade. São estes alguns dos motivos que impedem este tipo de público de seguir com prazer o processo de aprendizagem apresentado no espectáculo e retirar daí ensinamentos que lhe possam ser úteis na prática.
A simplicidade e as simplificações, tão criticadas no espectáculo de A Mãe, são objecto de uma interpretação luminosa e sensível por parte de Walter Benjamin no artigo “Um Drama de Família no Teatro Épico”, publicado pouco depois da estreia. Benjamin interpreta a peça de Brecht como “uma experiência sociológica sobre a transformação revolucionária das mães” e encara as simplificações realizadas no âmbito dessa experiência não como agitadoras, mas como construtivas. Partindo da constatação de que, na organização social da família, a mãe é o elemento mais explorado, mas também o elemento fundamental por ser aquela que dá vida e trabalha para assegurar a sua continuidade, Benjamin considera que a peça de Brecht analisa, questiona e demonstra, com base no exemplo de Pelagea Vlassova, até que ponto e como a função social habitualmente atribuída à mãe se pode transformar e tornar uma função revolucionária. Como “viúva de um operário e mãe de um operário”, Pelagea Vlassova é duplamente explorada, enquanto mulher e mãe e enquanto membro da classe operária. Entendendo-se inicialmente sobretudo como mulher e mãe dentro das quatro paredes da sua casa, Pelagea vai estender a sua função de mãe e o seu sentido de família à classe operária e à causa do comunismo, e intervir como militante revolucionária nas fábricas, no campo e nas ruas. Quando se aproxima pela primeira vez do partido, ao aceitar distribuir os panfletos em lugar de Pavel, Pelagea age apenas como mãe que quer ajudar o filho. Passo a passo, à medida que se vai confrontando com as situações na prática e as vai analisando, com o seu sentido de humor, a sua argúcia e o seu saudável senso comum, Pelagea aprende a ler e adquire a teoria e a consciência política que a transformam também em mãe do comunismo e a levam a agir para o ajudar a crescer.
Para Benjamin, o
objectivo
das simplificações é sublinhar a simplicidade dos ensinamentos
nas aprendizagens concretas e paradigmáticas feitas por Pelagea
Vlassova.
Embora não refira o nome de Eisler, destaca a particularidade de os
ensinamentos surgirem na peça em forma de canções, e de o “Elogio
do Comunismo”, o “Elogio da Aprendizagem” e o “Elogio da Terceira
Coisa” serem cantados por Pelagea não como canções de combate,
mas como “canções de embalar o comunismo, que é pequeno e débil,
mas cresce irresistivelmente”. É nesse sentido que as simplificações
da peça de Brecht revelam uma finalidade construtiva e não agitadora.
No exemplo de Pelagea Vlassova, demonstra-se de forma simples e clara
a possibilidade da transformação revolucionária da função social
da mãe não apenas na família, mas também na sociedade.
* Excertos de “Artes de ensinar e aprender. Propostas para uma educação estética e política numa série de peças”. In Bertolt Brecht – Teatro 3. Lisboa: Cotovia, cop. 2005. p. 85-92.
“É o amor que abre os olhos”
Roland Barthes*
Na nossa cultura, a Mãe é um ser de puro instinto, mas também, quando a sua função se socializa, é sempre num único sentido: é a que forma a criança; tendo dado à luz, pela primeira vez, o filho, ela dá à luz, pela segunda vez, o espírito: ela é educadora, preceptora, ela abre à criança a consciência do mundo moral. Toda a visão cristã da família assenta assim numa relação unilateral que parte da Mãe e vai até à criança: mesmo se não consegue dirigir a criança, a Mãe é sempre aquela que ora por ela, chora por ela, como Mónica pelo filho Agostinho.
Em A Mãe, a relação está invertida: é o filho que, espiritualmente, dá à luz a Mãe. Esta reversão da natureza é um grande tema brechtiano: reversão e não distribuição; a obra de Brecht não é uma lição de relatividade, de estilo voltairiano: Pavel desperta Pelagea Vlassova para a consciência social (aliás, através de uma práxis e não através de uma fala: Pavel é essencialmente silencioso), mas isso é um parto que só corresponde ao primeiro alargando-o. A velha imagem pagã (encontramo-la em Homero) dos filhos que sucedem aos pais como as folhas na árvore, o novo rebento expulsando o antigo, esta imagem, senão imóvel, pelo menos mecânica, dá lugar à ideia de que, ao repetirem-se, as situações mudam, os objectos transformam-se, o mundo progride por qualidades: não só, no movimento fatal das gerações, a mãe brechtiana não é abandonada, não só ela recebe depois de ter dado, como o que ela recebe é uma coisa diferente da que deu – quem produziu a vida recebe a consciência.
Na ordem burguesa, a transmissão faz-se sempre do ascendente para o descendente: é a própria definição de herança, palavra cujo destino ultrapassa muito os limites do código civil (herdam-se ideias, valores, etc.). Na ordem brechtiana não há herança, senão invertida: morto o filho, é a mãe que o retoma, que o continua, como se fosse ela o jovem rebento, a nova folha chamada a desabrochar. Assim, esse velho tema do revezamento, que alimentou tantas peças heróico-burguesas, já nada tem de antropológico; ela não ilustra uma lei fatal da natureza: em A Mãe, a liberdade circula no próprio âmago da relação humana mais “natural” – a da mãe com o filho.
E contudo, há nela
toda a “emoção”, condição sem a qual não há teatro brechtiano.
Vejamos a representação de Helene Weigel, que tiveram a ousadia de
achar demasiado discreta, como se a maternidade não fosse senão uma
força de expressão: para receber de Pavel a própria consciência
do mundo, ela torna-se, em primeiro lugar, “outra”; no princípio,
ela é a mãe tradicional, a que não compreende, que reprova um pouco,
mas que serve obstinadamente a sopa, que passaja a roupa; ela é a
Mãe-Criança,
isto é, toda a espessura afectiva da relação está preservada. A
sua consciência só eclode verdadeiramente quando o filho morre: ela
nunca se junta a ele. Assim, ao longo de todo esse amadurecimento, uma
distância separa a mãe do filho, lembrando-nos que esse itinerário
justo é um itinerário atroz: o amor não é aqui efusão, é essa
força que transforma o facto em consciência, depois em acção: é
o amor que abre os olhos. Será, então, preciso ser-se “fanático”
de Brecht para reconhecer que este teatro queima?
* Excerto de “Sobre A Mãe de Brecht”. In A Mãe. Almada: Companhia de Teatro de Almada, 2010. (Textos d’Almada; 40). p. 20-21.
A música em A Mãe
Bertolt Brecht*
De um modo ainda mais deliberado do que em qualquer outra peça do teatro épico, a música foi utilizada em A Mãe para levar o espectador a assumir a atitude de observador crítico. A música de Eisler não é de modo nenhum o que se chama uma música simples. Como música, é bastante complexa e não conheço outra mais séria. Não é de mais admirar a sua maneira de simplificar problemas políticos dos mais difíceis, cuja solução é uma necessidade vital para o proletariado. Nesse breve trecho que refuta as acusações de que o comunismo prepararia o caos, a música, graças ao seu gesto de conselho amistoso, permite de certo modo que a voz e a razão se façam entender. No “Elogio do Estudo”, que liga o problema da tomada do poder pelo proletariado ao problema do estudo, a música assume um escopo heróico, nem por isso deixando de revelar igualmente uma alegria espontânea. Do mesmo modo, o coro final “Elogio da Dialéctica”, que poderia facilmente dar a impressão de um canto de triunfo puramente sentimental, torna-se – pela linguagem musical adoptada – perfeitamente razoável (pretende-se muitas vezes, erradamente, que a técnica de representação épica renuncia pura e simplesmente aos efeitos emocionais. Todavia, o que se procura é uma clarificação das emoções, recusando-se a embriaguez de sensações, que tem a sua origem no inconsciente).
Para tornar crível que um gesto severo, mas delicado e razoável – como o que esta música impõe –, não conviria a um movimento de massas empenhado numa luta contra a violência, a opressão e a exploração mais desenfreadas, é preciso não ter compreendido um dos aspectos importantes dessa luta.
É claro, no entanto, que o efeito produzido por essa música depende muito do modo como ela é tocada.
* A Mãe: [Folha de Sala]. Almada: Companhia de Teatro de Almada, 2010.
Canções de Brecht
de Kurt Weill, Hanns Eisler, Paul Dessau, Kurt Schwaen, Franz S. Bruinier, Theodor Adorno, Bertolt Brecht
versões livres para português Yvette K. Centeno
desenho de luz José Carlos Nascimento
interpretação
Luís Madureira voz
Teresa Gafeira voz
Jeff Cohen piano*
* O espectáculo tem sido interpretado, em regime de alternância, pelos pianistas Jeff Cohen e Francisco Sassetti
produção Teatro Municipal de Almada
estreia [16Jul2008] Teatro Municipal de Almada
duração aproximada [1:10]
classificação etária M/12 anos
Teatro Nacional São João
[13 Fevereiro 2010]
sábado 16:00
Canções
“Balada de Mackie Naifa”, Kurt Weill | “Cântico de Matinas de Peachum”, Kurt Weill | “Canção dos Oito Elefantes”, Paul Dessau | “Jenny-Pirata”, Kurt Weill | “Canção do Vendedor de Água à Chuva”, Paul Dessau | “Canção do Aço”, Theodor Adorno | “Canção da Mulher do Soldado Nazi”, Hanns Eisler | “Canção da Mãe Coragem”, Paul Dessau | “Balada da ‘Puta de Judeus’ Marie Sanders”, Hanns Eisler | “Em Potsdam sob os Carvalhos”, Kurt Weill | “Miserere Alemão”, Paul Dessau | “Canção de Amor de um Tempo Difícil”, Kurt Schwaen | “Recordando Maria A.”, Franz S. Bruinier | “Surabaya Johnny”, Kurt Weill | “Vom Sprengen des Gartens (Da Rega do Jardim)”, Hanns Eisler | “Canção do Vento Suave”, Hanns Eisler | “Plubberum”, Paul Dessau | “Elogio do Estudo”, Hanns Eisler | “Canção do Correr das Coisas”, Paul Dessau | “Canção do Moldau”, Hanns Eisler | “Balada do Rufião”, Kurt Weill | “Alabama Song”, Kurt Weill | “Balada da Boa Vida”, Kurt Weill | “Canção da Alcoviteira”, Hanns Eisler | “Canção de Mandeley”, Kurt Weill | “Canção da Jovem Prostituta”, Hanns Eisler | “Canção de Nanna”, Kurt Weill | “Bilbao Song”, Kurt Weill
O regresso dos Mestres Cantores de Almada
Miguel-Pedro Quadrio*
Talvez tivesse sido o maior desafio – e a maior perplexidade – da 25.ª edição do Festival de Almada [2008]. O espectáculo Canções de Brecht prometia-nos, nada mais, nada menos, do que a estreia de Teresa Gafeira como cantora. Sem qualquer hesitação, todos os que acompanhamos o seu trabalho, reconheceremos que a actriz é dotada de uma leveza e de uma teatralidade que é, em si mesma, musical.
Foi diverso, todavia, o repto que então abraçou. Teresa Gafeira não poderia ter encontrado melhor equipa para se lançar neste – não totalmente – desconhecido (já se ouvira a sua voz no último Brecht que a Companhia de Teatro de Almada levou à cena, em 2001, quando protagonizou a encenação de Joaquim Benite de Mãe Coragem e os Seus Filhos). O público português já pôde apreciar a qualidade do trabalho do pianista norte-americano Jeff Cohen, que dirigiu musicalmente espectáculos como Sondai-me! Sondheim, uma fabulosa viagem ao universo do musical, dirigida por Ricardo Pais, ou A Mais Velha Profissão, da norte-americana Paula Vogel, uma desconcertante e comovente encenação de Fernanda Lapa.
Ora, o seu acompanhamento ao piano foi fundamental – na estreia do espectáculo, em 16 de Julho – para sustentar o ritmo vibrantemente enérgico que enervou as interpretações de Teresa Gafeira e Luís Madureira. O modo atento como seguiu os cantores, os espaços de respiração que criou, a encorpada e acutilante sonoridade com que percorreu escritas musicais tão diversas como as de Kurt Weill ou de Franz S. Bruinier desenharam o espaço músico-dramático ideal para vozes (agora vamos poder ouvir, também, o pianista Francisco Sassetti). O segundo contributo absolutamente crucial veio da singular inteligência musical do tenor Luís Madureira. A sua voz bem trabalhada, muito segura num registo lírico de grande beleza, desenvolveu a variadíssima paleta expressiva exigida pelo programa numa densidade aveludada. Não esqueçamos que, apesar de estarmos diante de um único autor das letras (Bertolt Brecht), os três intérpretes gizaram um reportório muito diverso sob o ponto de vista da respectiva intencionalidade musical. E foram justamente esses matizes – do farsesco ao quase pícaro, da feroz denúncia política ao lirismo mais pungente (foi de antologia o modo como cantou “Recordando Maria A.”, melodia onde ressoa a delicadíssima urdidura dos lieder de Schubert) – que distinguiram o seu desempenho.
Regressando à dúvida
que levantei no início do texto, posso afirmar que raras vezes assisti
à estreia absoluta de uma cantora, em cuja voz se evidenciasse, em
plena maturidade, uma riquíssima expressividade. A forma como o seu
movimento e os seus gestos acompanharam os contrastes dramáticos das
canções, a sua notável enunciação das não menos admiráveis versões
portuguesas de Yvette K. Centeno, a arrepiante profundidade com que
explorou o seu belíssimo e escuro timbre de contralto devolveram-nos
– integral e impressivamente – a desesperançada esperança com
que Brecht imaginou a estupidificante féerie do Capitalismo.
* In Canções de Brecht. Almada: Companhia de Teatro de Almada, 2008. (Textos d’Almada; 35). p. 19-20.
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