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Agenda do Porto
21 juin 2007

Gabiru

lida no "Primeiro de Janeiro" de hoje:

               
ARTES E LETRAS >                   das letras portuguesasPESQUISAR
                                                                                      
Pobre príncipe do                   sonho


Ramiro Teixeira

Sob a chancela de                   “O Progresso da Foz” e com a indicação de tratar-se do                   primeiro fascículo dos “Cadernos do Passeio Alegre”, acaba de                   ser publicado o «Centenário do Gabiru. Nos 100 anos da                   publicação de “Os Pobres”, de Raul Brandão», de autoria de                   Pedro Baptista.
Segundo o que este fascículo regista,                   “estes cadernos serão repositório de intervenções, lidas ou                   não, diversas em tema e na maneira, em que o assunto, ou                   orador, ou público, ou local da sessão, têm um fio de ligação,                   ainda que ténue, com a bela e milenar terra da Foz do Douro.                   Repor a antiga e nobre tradição portuense de levar as elites                   intelectuais e sociais a falar aos cidadãos agrupados em torno                   das colectividades locais é um dos objectivos destas                   conferências e, por extensão, destes cadernos.”
Entre a                   forma e o espírito desta mensagem ou propósito, prefiro o                   espírito. E desejo, sinceramente, que “O Progresso da Foz” não                   se canse nunca de promover conferências e de as editar, porque                   o que faz falta, já dizia o poeta, é comunicar, dar a conhecer                   o passado, o presente e porventura o futuro, dado que não pode                   haver futuro ao arrepio do conhecimento do passado e do                   presente.
Vamos agora ao Gabiru, que é como quem diz, a                   essa personagem inesquecível de «Os Pobres», na qual circula                   tanto sob a forma de um pobre príncipe do sonho, quanto sob a                   forma de um certo panteísmo, abarcando e acolhendo em si o                   espanto de existir universalmente, em comunhão plena com a                   natureza, ainda que sempre sentida ou vivida em espanto                   quotidiano. Ele o diz: “Sinto-me enlouquecer diante das coisas                   mais simples: de um farrapo de nuvem como um sudário a rasto,                   de um raio de luz em pó, todo de oiro vivo, que entra no meu                   quarto (...) cada criatura é um composto de almas, de montes,                   de pedras, de águas...”
Qual S. Francisco de Assis, O                   Gabiru dele se distingue porque não aceita a vida sem a                   inquirir, sem lhe apontar o absurdo, a morte, o grotesco, os                   vícios e as misérias sociais, interrogando-se, inclusive,                   sobre a realidade que vive ou julga viver (“Não sei bem se                   estou morto ou se estou vivo...”). No mais é semelhante,                   conquanto sempre no oposto, inclusive na santa loucura ou                   mística que o devora, que é a de em tudo descrer, considerando                   o homem “um poço sem fundo” e intuindo constantemente a                   existência de uma super-realidade nas coisas mais comezinhas                   do quotidiano.
Claro que Gabiru é uma espécie de alter ego                   do próprio autor e, por extensão, do intelectualismo da época,                   nomeadamente pelas influências que lhe advêm do                   simbolismo-decadentista, de Edgar Poe, Hoffmann e Kierkegaard,                   das ideias niilistas, bergsonianas, quanto mais não fora pela                   via de Sampaio Bruno, etc. E só não cito a temática romanesca                   de Dostoievsky, porque de todo desconheço se Raul Brandão o                   leu antes ou durante a criação das suas obras mais                   introspectivas.
A esta visão angustiada de existir, onde os                   pobres ascendem à condição de irmãos em Cristo, e os não                   pobres, como Gabiru/Autor, se debatem com sentimentos de                   remorso, obrigados, digamos, a reflectir e a pensar, sobre o                   mundo em que se situam, aliada a nevroses várias, entre as                   quais a do literato ceder lugar ao filósofo, em meditação                   pessimista sobre a condição humana, ficou assente chamar-se                   mal do fim-do-século, na sequência, aliás, de todos os finais                   de século, desde o X, anunciados como apocalípticos. Neste                   proclamado mal de fim-de-século de 1900, há tanto de realismo                   naturalista, enquanto crítica de costumes, quanto de inclusão                   de teses psicológicas e metafísicas, cabendo aos heróis, ou                   personagens que tal encarnam, um sofisticado intelectualismo,                   as mais das vezes repartido entre a condição de poetas e de                   filósofos.
Nesta perspectiva, o caso de Raul Brandão possui                   um antecedente a ter em conta, raras vezes citado, que é                   Manuel da Silva Gayo, autor do romance “Torturados” (1911), e                   que Óscar Lopes define da seguinte maneira: é uma quase                   autobiografia espiritual que abrange os seus mais íntimos                   companheiros de geração (...); pessimista contemplativo, mesmo                   quando se quer actuante, em constante luta ineficaz contra as                   suas próprias duplicidades de pensar e sentir...
À margem,                   porém, destas eventuais afinidades, o que sempre esteve em                   causa nos escritos de Raul Brandão, é a velha questão de se                   saber se a vida tem um sentido e se, acaso o possui, se é                   proveniente duma vontade inteligente, a qual preside à sua                   organização. A partir daqui vale tudo, quer pela admissão de                   tal vontade existir, quer pela convicção de que a harmonia                   (falsa) do universo é ditada pelo caos, por uma vontade cega e                   inconsciente, pelo que a vida é um absurdo, produto duma                   mistificação. Assim sendo, não há Bem nem Mal, mas tão-somente                   uma mixórdia de conceitos moralizadores ou demoníacos, quando                   muito dependentes duma química ocasional, fortuita, dando-se a                   existência como decorrente de um estado selvagem, um                   querer-viver irresistível, onde o homem é o lobo do homem ou                   um solitário moralista vivendo uma trágica realidade da qual                   só escapa por uma espécie de loucura clarividente, pelo sonho,                   que no caso se transmite, digamos, através de um poema                   inominado.
Pergunta inocente e sob o risco de passar por                   nacionalismo patriótico: acaso Sartre terá lido Raul Brandão                   ou vice-versa?
Claro que tudo isto faz parte duma angústia                   universal, onde todos se misturam num imenso colectivo, motivo                   pelo qual as mesmas questões se evidenciam em autores                   localizados em opostas ou distantes geografias. Ao fim e ao                   cabo, o homem e a sua angústia de existir é o mesmo em toda a                   parte.
Esta é a minha versão, versus-caras, do Gabiru/Autor                   que, entre outras coisas, antecipou não digo a chamada                   corrente de pensamento, que essa já estava autorada, mas a                   circularidade temporal-intemporal da narrativa.
E a de                   Pedro Baptista?
Aqui chegado, importa dizer que esta sua                   abordagem vale por um juízo fundamentado, o que equivale a                   dizer que se apresenta bem travejada, dando provas evidentes                   de saber e de domínio da matéria. De um modo geral, o                   importante do pensamento de Raul Brandão está aqui, a par de                   algumas minudências de relativo interesse, como é o caso da                   definição do significado do vocábulo gabiru, segundo os                   dicionaristas. Antes de mais do que de menos. No fundamental,                   porém, Pedro Baptista consegue imprimir, nesta sua abordagem,                   o que de mais complexo sobrevive no pensamento e obra de Raul                   Brandão, tanto sob a forma indagativa, quanto sob a forma                   reflexiva.

(Ficha: Centenário do Gabiru. Nos 100 anos                   de publicação de “Os Pobres”, de Raul Brandão. Pedro Baptista.                   Conferência proferida no Orfeão da Foz do Douro, em 15 de                   Fevereiro de 2007. Porto, “O Progresso da Foz”,                   2007).

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