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17 mars 2010

O DEUS DA MATANÇA, de Yasmina Reza

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Teatro Carlos Alberto

19-28 Março 2010

 

O Deus da Matança

de Yasmina Reza

encenação João Lourenço

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O Deus da Matança ©Teatro Aberto


O Deus da Matança

Le dieu du carnage (2006)

de Yasmina Reza

versão João Lourenço, Vera San Payo de Lemos

dramaturgia Vera San Payo de Lemos

encenação João Lourenço

cenografia António Casimiro, João Lourenço

figurinos Maria Gonzaga

desenho de luz Melim Teixeira

interpretação

Joana Seixas Verónica

Paulo Pires Alain

Sérgio Praia Miguel

Sofia de Portugal Ana

produção Teatro Aberto

estreia [17Jun2009] Teatro Aberto (Lisboa)

duração aproximada [1:20]

classificação etária M/16 anos

Teatro Carlos Alberto

[19 | 28 Março 2010]

quarta-feira a sábado 21:30 domingo 16:00

“Escrevo um teatro de nervos”

Entrevista com Yasmina Reza.

Por Jérôme Garcin.*

Mesmo que a política não seja o assunto da sua peça, O Deus da Matança, ela ilustra perfeitamente o tema central: o ser humano civilizado não passa de um selvagem que se controla, e basta uma coisinha de nada para que se passe da falsa urbanidade à verdadeira barbárie.

Não acho que o ser humano seja pacífico. Penso que não se evoluiu desde a idade da pedra e que o verniz social que nos protege da selvajaria é inquietantemente ténue, está sempre prestes a estalar. Ponha quatro pessoas dentro de um elevador que se avaria de repente e elas ficam doidas. Basta haver pânico e toda a gente se espezinha. Observe crianças a brincar na areia: não têm alternativa, batem umas nas outras para ficarem com um objecto na mão. Eu escrevo um teatro de nervos, porque são os nervos que nos comandam. As personagens que componho desde sempre são pessoas bem-educadas que pretendem manter a compostura. Mas como também são muito impulsivas, não conseguem manter as regras que impuseram a si próprias. Vão derrapar, mas sempre contra a sua vontade, mesmo quando estão em plena derrapagem. É precisamente esta luta da pessoa contra si própria que me interessa.

De onde veio a ideia para esta peça?

Quando o meu filho tinha 12 anos, contou-me que um dos amigos tinha levado com um pau de um colega da turma e este lhe tinha partido um dente. Encontrei um dia, à saída da escola, a mãe da vítima e perguntei-lhe se o filho estava melhor. E ela respondeu-me: “Acredita que deixámos uma mensagem no atendedor de chamadas dos pais do rapaz que agrediu o nosso filho e eles nem sequer nos responderam?” Senti que tinha ali um tema ideal para mim.

É um retrato terrível de um grupo de pais de alunos que, como diz Ana na peça, “tomam a defesa dos filhos de uma maneira infantil”.

Os pais dos alunos são um género de pessoas um pouco aterrorizador. Nas reuniões de pais, alguns interessam-se com uma seriedade espantosa pela organização da vida comunitária dos filhos.

Avançando para o assunto, os dois casais da peça são mais de esquerda e andam com a boa consciência pendurada ao ombro.

Não situei as minhas personagens e não estou assim tão certa de que a boa consciência seja um apanágio do pensamento de esquerda. Mas é verdade que a esquerda veste as roupagens do bem melhor que a direita. Um handicap que a direita nunca soube superar. Na peça, as quatro personagens aparentam, no início, aquilo a que eu chamaria uma boa vontade de civilização. Como eu faria no lugar delas. Porque eu não escrevo para estigmatizar. Pelo contrário. Não me excluo para julgar. Nunca olho para as personagens como moralista nem como entomologista. Ou, se o faço, é a partir de dentro. Neste caso, sou as quatro personagens ao mesmo tempo, compreendo-as intimamente, e até poderia dizer que há, na minha maneira de as representar, uma fragmentação pessoal.

No entanto, na peça, não é tanto a personagem de Verónica, a intelectual e mãe da vítima, mas mais a de Alain, o advogado e pai do agressor, sempre colado ao telemóvel, que parece aproximar-se mais de si, o mesmo Alain que acredita no “deus da matança, o único que governa, sem limites, desde a noite dos tempos…”

Não me agrada a ideia de que uma personagem possa ser um porta-voz. Aliás, o pensamento, ou seja, as ideias sobre o mundo, as opiniões, são quase sempre o lado menos interessante das pessoas. Sim, há certas frases de Alain que eu poderia assumir como minhas naquela situação. Ele é o único que tenta relativizar o que aconteceu, manter a cabeça fria. Quando ele diz a Verónica: “Todos nós gostaríamos de acreditar na possibilidade de as coisas melhorarem. Mas será que isso existe?” ou “Você escreve um livro sobre o Darfour para se salvar a si própria”, são pensamentos que também poderiam ser meus. Mas também há nas outras personagens reacções que me são próximas, e sentimentos também. Mesmo em Verónica, que parece estar mais distante.

Quando começou a escrever a peça, já sabia que ia terminar com uma matança?

Eu sabia duas coisas: que se iria desenrolar em tempo real e que iria terminar com uma espécie de matança. Claro que não sabia como esse desenvolvimento iria ser ao certo. A partir de um determinado momento, as personagens têm as suas próprias leis, não as podemos arrastar para onde queremos. Não penso que volte a escrever uma peça que se passe em tempo real. Os constrangimentos do tempo real são assustadores. Somos obrigados a manter uma tensão que não seja artificial, conduzimos um equipamento que não quer saber para nada das leis da dramaturgia, deixa tão pouca respiração, é tão difícil, tão extenuante como querer parar cavalos embalados num triplo galope!

* Excerto de uma entrevista originalmente publicada na edição de 14 de Fevereiro de 2008 da revista Le Nouvel Observateur.

In O Deus da Matança: [Programa]. Lisboa: Teatro Aberto, 2009. [Trad. Vera San Payo de Lemos.] p. 20-22.

“Um humor que não conhece tabus”

Entrevista com Yasmina Reza.

Por Marie-Françoise Lectére e Christine Dössel.*

Foi actriz antes de começar a escrever. O facto de ter sido actriz influencia a sua escrita?

Absolutamente. Eu escrevo para actores. Sei que eles fazem milagres com uma única palavra.

Dá-lhes belos papéis para eles representarem?

Sim, mas esses belos papéis também podem ser feitos de pausas ou de uma só palavra colocada de maneira eficaz. As minhas peças são escritas para bons actores, é por isso que dou grande valor à escolha dos teatros certos e de elencos de primeira categoria. Isso tem a ver com o ritmo subtil, a musicalidade da linguagem e o humor particular dos meus textos. Se não se consegue captar isso com precisão, as peças tornam-se demasiado leves e perdem o seu significado.

Será que o seu humor é um humor tipicamente judeu?

Acho que sim. Os judeus são capazes de rir de tudo, mesmo de catástrofes. É um humor que não conhece tabus.

Talvez seja por determinados espectáculos serem maus que as suas peças sejam desqualificadas por alguns críticos como fazendo parte de um boulevard fino.

Não me importo nada com isso. Escrevo o que quero e como quero.

O título O Deus da Matança não soa a boulevard leve. Não há nada que escape à matança, nem as mulheres, nem os homens, nem os casais, nem os bem intencionados, nem os homens de negócios, nem as crianças.

Sobre as crianças não digo praticamente nada, embora sejam elas que sirvam de pretexto. Tal como em Três Versões da Vida, quis mostrar apenas que as crianças não são um elemento pacificador: não dão consistência ao casamento, não unem a família, trazem consigo a discórdia.

Encontra-se a si própria nas suas personagens?

Há com certeza alguma coisa de mim em todas elas. E eu gosto de todas, mesmo da personagem que diz que o deus da matança rege sem tréguas desde o princípio dos tempos.

A sua visão do mundo é muito sombria.

…Mas eu procuro a alegria.

É feliz?

Escreva: “Ela riu com gosto!”

* Excerto de uma entrevista originalmente publicada na edição de 28 de Setembro de 2007 no jornal Berliner Zeitung.

In O Deus da Matança: [Programa]. Lisboa: Teatro Aberto, 2009. [Trad. Vera San Payo de Lemos.] p. 17-18.

Por favor, parem de rir de mim

Agnes Poirier*

A sua peça Arte rendeu 200 milhões de dólares e foi produzida em 35 línguas – contudo, a autora francesa Yasmina Reza não inspira o respeito que julga merecer. Será que uma brilhante nova peça e um ano na companhia íntima do Presidente Sarkozy lhe trarão a boa fama por que anseia?

O seu sucesso pode impressionar alguns, mas para muitos é a confirmação do grande talento de Yasmina Reza. Se O Deus da Matança, a sua mais recente peça, for mais um triunfo quando chegar aos palcos londrinos no fim deste mês, os seus devotos irão rejubilar enquanto outros tomarão isso como mais uma prova do declínio cultural e da vitória do artifício sobre a substância.

À semelhança do Presidente francês Nicolas Sarkozy, cujos passos ela seguiu ao longo de um ano, como surge detalhado no seu bestseller publicado em Setembro sob o título bastante impressionante Madrugada, Tarde ou Noite, Reza tornou-se uma figura fracturante. Desde a sua ascensão à fama internacional com Arte […], deliciou plateias enquanto ia sendo catalogada como rainha das “grandes ideias em versão light” e do “teatro do vestidinho preto” pelos críticos, que adoram recorrer exactamente à mesma crueldade sofisticada que se tornou sua imagem de marca.

No entanto, antes de o desprezo mútuo ter azedado esta relação, era como uma lua-de-mel. Surpreendidos por ver uma autora francesa fazer uma ponte entre as divergências culturais de modo a fazer rir um público internacional, os críticos de teatro britânicos e norte-americanos saudaram a sua coragem e as suas capacidades. Até que enfim – suspiraram – uma autora francesa que não é entediante, não se alonga demasiado, apresenta um enredo cartesiano claro e consegue criar um espectáculo que não ultrapassa os 90 minutos. Mais, cá está uma autora francesa que não é demasiado enfatuada, contudo possui pretensiosismo suficiente para lembrar a plateia de que a acção tem lugar em Paris, e que também consegue fazer passar uns pensamentos elevados sobre morte e sexo, pelo meio das piadas. Mas o que apreciaram mais foi a sua inteligência. Atravessando o Canal da Mancha e o Atlântico, os críticos de teatro não viam nada assim desde quem – Jean Anouilh? Ou terá sido Molière?

Em 1997, quando tinha apenas 37 anos – surpreendentemente nova para uma dramaturga francesa de sucesso –, Reza afirmou que vivia “um sonho”. Conversei com ela mesmo antes da estreia de Arte em Londres, em Outubro de 1996, e a sua excitação era a de uma debutante, fresca e infantil. Para ela, o palco londrino significava o mundo. “Sei quão seriamente os britânicos encaram o teatro, como adoram a palavra escrita, como são críticos. Sinto-me incrivelmente honrada por ter a minha peça representada em Londres. Simplesmente, não há recompensa maior”.

A sua peça não só foi representada em Londres como se tornou num êxito de bilheteira junto do público e da crítica, e de facto naquilo que é habitualmente designado por “fenómeno cultural”. Rapidamente surgiram boatos acerca da transferência para a Broadway, graças a Sean Connery que, depois da sua esposa francesa Michèle ter visto a peça em Paris, conseguiu os direitos da peça. Os prémios começaram a chover: a pequena dramaturga de olhos persas, elegantemente vestida, arrecadou um Molière, um Olivier e um Tony.

O sucesso de Arte não foi, todavia, alcançado por acaso. Foi o resultado de um plano cuidadosamente orquestrado. E todas as subsequentes peças de Reza mantiveram o mesmo padrão com uma disciplina impecável. Primeira regra: conseguir o melhor tradutor, custe o que custar – alguém que conheça as palavras, a cultura, o humor. Melhor ainda, arranjar alguém que seja ele próprio, idealmente, melhor escritor e dramaturgo. Para as versões inglesas de Arte e O Deus da Matança, no Reino Unido, este alguém foi Christopher Hampton. (Pergunte-se a David Hare quem, na opinião dele, é o mais substancial dos dois. Ele deixou bastante claro, na altura, que o seu amigo Hampton poderia estar a perder o seu tempo emprestando o seu talento a Reza.)

Segunda regra: conhecer o meio. Reza, que se virou para a escrita após uma tentativa falhada como actriz, conhece o mundo do teatro de trás para a frente e de frente para trás. Ela escreve sobretudo para actores. O seu tradutor norte-americano, David Ives, numa entrevista ao American Theatre Magazine, concorda: “A verdade é que metade da razão por que as suas peças são feitas é porque os actores as querem representar. Os seus textos são tão suculentos para os actores. Penso que as escolas querem tê-las também porque é uma espécie de jogo de cartas que os estudantes apreciam muito. Há uma massa estaladiça para um actor”.

Reza serve aos actores papéis fantásticos numa bandeja, com tiradas sumarentas e monólogos crocantes. E eles voltam a pedir mais. Planear temporadas de três meses para Arte, cada uma com um elenco de estrelas, provou ser essencial para o seu sucesso. Já que os grandes nomes não se podem comprometer por temporadas mais extensas, o espectáculo era “refrescado” de 12 em 12 semanas. […]

Terceira regra: nunca esquecer os directores e os gestores do teatro; eles também precisam da ajuda de uma dramaturga. Reza decide sempre tornar o seu trabalho mais simples – não usa mais do que quatro personagens e confina a acção a um único cenário, algo que qualquer gestor de um teatro regional, com necessidade de receitas, agradece.

David Ng, o historiador americano que investigou a popularidade de Reza na América do Norte, revela que, combinadas, as suas peças já viram perto de 170 produções profissionais desde 1998.

As companhias de teatro apontam razões práticas, mundanas de facto, para a popularidade generalizada de Reza. O Heller Theater em Tulsa, Oklahoma, produziu recentemente O Homem Inesperado, uma peça de duas personagens que ela escreveu em 1995. “O nosso cenário era simplesmente dois bancos que comprámos num armazém”, explica Julie Tattershall, a directora artística do teatro. “É uma produção de baixo custo.” Ela acrescenta que os teatros regionais com pequenos orçamentos podem produzir as peças de Reza porque estas não requerem grandes elencos. […]

A quarta regra tem menos a ver com técnica e mais a ver com uma qualidade intangível: o talento. Para todos aqueles que gostariam de ver Reza desfeita em pedaços e arrasada no altar do Teatro, o seu sucesso não aconteceu apenas por milagre. O seu talento é simples, “robusto” nas palavras de Hampton, e ela consegue alcançar uma das coisas mais difíceis: fazer as pessoas rir de si próprias.

Em França, chamam-lhe humor anglo-saxónico. Ela chama-lhe judeu. Outros descreveram-no como incisivo, cruel, amargo, furioso, narcisista, compacto, malicioso e acutilante. Ela faz o que os seus compatriotas fazem melhor: disseca a burguesia com a leveza e despreocupação de uma criança, descobrindo a vida ao desmembrar insectos. Crucifica as suas personagens como um estudioso de lepidópteros prende borboletas com alfinetes a um cartão. Anouilh desenvolvia um estudo igualmente impiedoso da burguesia francesa, embora com mais profundidade, tal como o cinema francês o faz pela caneta e o olhar de Renoir, Chabrol, Truffaut e, mais recentemente, Agnès Jaoui, cujo trabalho partilha da sofisticação cruel de Reza.

Independentemente disto, Reza escreve bem. Não se serve de truques fáceis, a Muhammad Ali do teatro francês. Por vezes, no entanto, em particular nos seus romances, como Uma Desolação e Adam Haberberg ou ainda no livro de contos Hammerklavier, perde-se em monólogos com, nas palavras do seu tradutor norte-americano, “frases longas e complicadas, pontuadas por vírgulas”. Acrescenta: “Não me parece que as piadas surjam entre vírgulas. Elas acontecem nos pontos finais, porque depois de um ponto final vem a gargalhada”.

Mas traduzidos de maneira inteligente e bem interpretados, os seus monólogos funcionam bem, quer como ficção quer como textos dramáticos – embora não ao gosto de toda a gente. O crítico do New York Times, Michiko Kakutani, apelidou os solilóquios de Adam Haberberg de “imprecações de um blogger zangado à meia-noite, repletas de som e fúria e sem significar coisa nenhuma”.

Mas porque se deverá ela importar, desde que consiga fazer as pessoas rir? Estranhamente, ela importa-se. Reza até se sente incomodada por ver aquilo que considera tragédias e dramas transformados em comédias pelo público britânico e norte-americano. Após ter assistido à estreia de Arte em Londres, em Outubro de 1996, dirigiu-se a Hampton, meio-divertida, meio-séria: “O que é que você fez?”, perguntou-lhe. Em França, o público não tinha rido nem metade do que tinha rido aqui.

À medida que o tempo passou, com o sucesso assegurado, cresceu a sua irritação em relação ao público que não levava as suas palavras a sério. Em 1999, disse ao Los Angeles Times: “Gostaria de vê-los rir nos momentos certos”. Um ano mais tarde, afirmou a outro jornalista: “O riso é sempre um problema e é muito perigoso. O modo como as pessoas riem muda o modo como se vê uma peça. Uma peça muito profunda pode parecer muito superficial. As minhas peças foram sempre descritas como comédias mas eu penso que são tragédias. São tragédias divertidas, mas são tragédias. Talvez se trate de um novo género”.

A sua peça seguinte, Três Versões da Vida, era, nas suas palavras, uma peça metafísica; porém, as plateias em todo o mundo tomaram-na por uma farsa. Adoraram-na e ela odiou-os por isso.

Devido à força universal da sua comicidade sofisticada, Reza continua profundamente enraizada na cultura francesa, onde a seriedade é mais bem vista do que o riso. E a verdadeira tragédia para Reza é que não está em paz com o seu sucesso. Esperava ser vista como uma Pinter gaulesa para quem o silêncio é tão importante quanto as palavras, como uma mulher Pirandello ou uma irmã gémea de Beckett. Em vez disso, foi comparada a Alan Ayckbourn, e isso desagradou-a. The Times afirmou que ela era uma “mini-Proust”, mas ela não ficou contente.

Em França, a diversão é quase tão mal vista como o sucesso comercial. O facto de que “Yasmina Reza est très riche” (como Dominic Dromgoole, o director artístico do Globe Theatre, disse em Full Room, na sua pesquisa acerca dos dramaturgos contemporâneos) nunca caiu muito bem junto dos críticos franceses. A elite francesa não se importa se o público não vai ver as suas peças, desde que estas tenham sido aceites pelos profissionais.

A cidadã Reza tem ainda de ser elevada pelos seus colegas ao nível (imaginário) do chevalier du thêátre français. E ela sempre teve duas hipóteses em relação a isso: escolher se embandeira em arco com a liberdade que o sucesso lhe trouxe perante os seus detractores, ou se fica ostensivamente ressentida pela sua exclusão de um panteão ao qual insiste que pertence.

Farta de críticos e do público que, por vezes, despreza claramente, Yasmina Reza centrou-se na figura de Sarkozy que, como a maioria das suas personagens, é auto-obcecado e patologicamente ambicioso. Seguiu-o durante um ano, durante a sua campanha presidencial, e produziu um retrato, ao mesmo tempo cruel e elogioso, de um presidente que é uma criança egoísta. O livro foi um êxito mesmo antes de chegar às livrarias, contudo não lhe valeu qualquer prémio literário. Philippe Lançon escreveu no Libèration que Reza era um espelho perfeito para Sarkozy, já que ambos são “secos, impiedosos, ambiciosos, sem dúvidas ou subtilezas, tipos balzaquianos que adoram montar um grande espectáculo e cuja força de vontade é a sua única redenção”.

Tal como Sarkozy, Yasmina Reza mal conheceu o pai, pelo menos enquanto criança. Judeu persa nascido em Moscovo, era um engenheiro com uma paixão pelo piano que casou com uma judia húngara que tocava violino. Reza disse uma vez que apenas pôde conhecer melhor o pai na casa dos vinte, até à morte dele dez anos depois. Durante esses anos preciosos, ele tornou-se o seu melhor amigo, cujo humor seco herdou. Será que ela anseia pelo reconhecimento dos seus colegas tanto como pelo do seu père?

Se for assim, disfarça-o bastante bem, sob uma confiança parisiense aparentemente impenetrável. Numa entrevista rara que deu a propósito de O Deus da Matança, Yasmina Reza afirma, ou melhor declama: “Na Alemanha, sou muito considerada. Foi um teatro alemão que encomendou esta peça; eu acedi ao desafio e escrevi-a em três meses”. Quando lhe perguntam se se considera uma moralista, ela responde: “Não me cabe a mim dizer, mas o teatro é um espelho, um reflexo incisivo da sociedade. Os grandes dramaturgos são moralistas”.

Quer seja uma moralista, uma impostora ou uma grande artista, Reza sabe certamente como tratar as suas personagens sem misericórdia, como é evidente em O Deus da Matança. A premissa é simples, mas o diabo está nos detalhes. Uma criança agride outra no recreio: os pais de ambos, casais da classe média que insistem em manter a sua dignidade, reúnem-se para discutir o assunto. […] Se deseja agradar a Reza, não saia do teatro a rir; faça um ar de quem está condenado para toda a eternidade.

* Excertos de “Please stop laughing at me”, artigo originalmente publicado na edição de 16 de Março de 2008 do jornal The Independent.

In O Deus da Matança: [Programa]. Lisboa: Teatro Aberto, 2009. [Trad. Marta Dias.] p. 11-15.

Yasmina Reza

Daniel Lemahieu*

Nasce em Paris, em 1959. Actriz, romancista e dramaturga francesa. A sua primeira peça, Conversations après un enterrement [Conversas Depois de um Enterro], é escrita e estreada em 1987 (Théâtre Paris-Villette). Segue-se La Traversée de l’hiver [A Travessia do Inverno], escrita em 1989 para o Théâtre National de la Colline. Art [Arte] abre-lhe a porta do sucesso. Representada em mais de 40 países, a peça disseca as falsas aparências da amizade, usando como pretexto da disputa uma tela pintada de branco (Comédie des Champs-Elysées, 1994). L’Homme du hasard [O Homem do Acaso] (Théâtre de l’Atelier, 1995) passa-se no interior de uma cabine de comboio: entre um escritor célebre cheio de azedume e uma mulher que se vê diante do seu autor preferido, desencadeia-se uma sucessão de fluxos interiores autónomos, “cada um em si mesmo”. O diálogo irrompe no último momento. Trois versions de la vie [Três Versões da Vida] (Burgtheater, 2000) e Une pièce espagnole [Uma Peça Espanhola] (Théâtre de la Madeleine, 2004) entrelaçam a questão do tempo e aquele jogo de verdadeiro e falso que é a existência, de que só mais tarde nos lembramos. Dans la luge de Schopenhauer [No Trenó de Schopenhauer] (Théâtre Ouvert, 2006) exibe quatro personagens que confessam alternadamente as suas obsessões enquanto trocam enunciados filosóficos em segunda mão sobre o estado do mundo e dos seres. Le Dieu du carnage [O Deus da Matança] (Zurique, 2006) coloca em cena dois casais que se comportam como cães de faiança numa sala de visitas da burguesia, o que é representativo dos lugares do discurso da dramaturga. Atacam-se mutuamente e desagregam-se por causa dos seus filhos, um dos quais feriu ligeiramente o outro na sequência de uma zanga.

Este teatro de imbricação de micro-situações primeiro banais e depois explosivas, de espaços e de tempos heterogéneos, articula múltiplos níveis de consciência e de percepção da realidade, no interior dos quais surgem monólogos, acidentes, quebras, rupturas de sentidos e de sensações sublimados por cómicas ironias. Reza gere os tropismos, as elipses: uma troca de frases comuns, uma palavra desastrada e anuncia-se a calamidade, que avança, inelutável, por entre deslizes progressivos de sentimentos, da simples constatação ao desencadeamento de paixões num espaço fechado que se torna cada vez mais denso, explorado com pequenos toques, suaves mas ferozes. Estes confrontos não excluem o riso, porque cada qual acaba por se reconhecer nas suas fraquezas, excessos, defeitos, não-ditos e frustrações mortificadas. As personagens, frequentemente imersas numa crise de nervos, exprimem o desejo irreprimível de chegar a vias de facto, mas detêm-se a tempo porque são, no fundo, cobardes e perversas. Essa denunciada cobardia, que é também a nossa, comove-nos graças à densidade dos silêncios que pontuam as nossas pequenas comédias, sérias e frívolas, atravessadas por patifarias e pequenos nadas.

In Michel Corvin, dir. – Dictionnaire Encyclopédique du Théâtre à Travers le Monde. Paris: Bordas, cop. 2008. p. 1166.

 

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